Em Manaus, a decisão do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) de realizar um sorteio prévio para o preenchimento de cotas raciais em um concurso público, ocorrido em março de 2024, impediu a nomeação de candidatos autodeclarados negros nos cargos de pesquisador e tecnologista. De 63 vagas do certame, 12 foram reservadas para Pessoas Pretas ou Pardas (PPP) durante o sorteio por especialidades dos cargos, mas o órgão federal decidiu ocupar oito vagas de cotistas por brancos ao alegar a falta de candidatos afrodescendentes aprovados nas áreas de atuação sorteadas.
Por meio do Edital nº 1 – INPA/MCTI, publicado em 9 de outubro de 2023, o instituto abriu um concurso público para preencher 51 vagas para pesquisador e 12 vagas para tecnologista. O Inpa esclaredeu no edital que se basearia no que prevê a Lei de Cotas Raciais (Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014) para reservar 20% das vagas em cada cargo para candidatos negros.
Na teoria, seriam 10 vagas para pesquisador e 2 vagas para tecnologista contemplando pretos e pardos. Entretanto, ao fracionar as vagas por especialidade por meio de um sorteio, o Inpa burlou a Lei de Cotas em concursos públicos, segundo denúncias no Ministério da Igualdade Racial (MIR), do governo federal, e no Poder Judiciário.
Em defesa, o Inpa informou na Justiça federal que utilizou orientações da Nota Técnica nº 62/2023, da Diretoria de Políticas de Ações Afirmativas do MIR, que recomenda a realização de um sorteio prévio por especialidades para candidatos autodeclarados pretos ou pardos nos certames federais. Uma manobra que remete à “sorte” um direito assegurado por lei à população negra de disputar um cargo na ampla concorrência e na reserva de vagas de um concurso.
Recentemente, o Inpa homologou o resultado do concurso público e os nomes de dois cotistas aprovados que estavam na lista reservada para negros não são identificados como afrodescendentes. A suspeita da pesquisadora e ativista pelos direitos da população negra no Amazonas, Wanessa da Costa Nascimento, é que esses dois candidatos saíram da reserva de vagas por terem pontuação acima dos outros concorrentes do certame e entraram na lista de classificados na ampla concorrência. Nascimento foi uma das candidatas negras prejudicadas pelo sorteio.
Na prática, o número de vagas reservadas para pessoas pretas ou pardas no concurso do Inpa acabou reduzido de 12 para quatro. As outras oito vagas que pertencem à cotistas serão remanejadas para candidatos brancos.
Em um relatório chamado “A Implementação da Lei nº 12.990/2014: Um Cenário Devastador de Fraudes”, divulgado em março de 2024, pelo Observatório das Políticas Afirmativas Raciais (Opará), é apresentado seis modalidades de burlas da Lei de Cotas. Uma delas é do sorteio por especialidades [fracionamento do cargo por área] adotado pelo Inpa para distribuir as vagas reservadas para pretos ou pardos neste último concurso e com o amparo da nota técnica do próprio Ministério da Igualdade Racial.
O grupo de pesquisa do Observatório Opará defende que o Ministério da Igualdade Racial revogue com urgência a Nota Técnica nº 62/2023 e que as unidades de pesquisa como o Inpa, vinculadas ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), promovam uma reparação para as pessoas negras prejudicadas em concursos devido às recomendações do MIR.
“A sorte não pode ser um fator regulador para a gente ter acesso a um direito. E o sorteio testa a nossa sorte”, reforçou Ana Luisa, que foi a primeira docente negra a ingressar como cotista na Univasf. “As instituições [federais] possuem autonomia para organizar seus próprios concursos, mas não têm autonomia para burlar a lei”, disse Wanessa.
Na Nota Técnica nº 62/2023, que foi elaborada a princípio com o intuito de melhorar a aplicação da Lei de Cotas nos concursos públicos, o Ministério da Igualdade Racial (MIR) lista as recomendações do Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 41/2017, em que a Corte afirma que “concursos não podem fracionar as vagas de acordo com a especialização exigida para burlar a política de ação afirmativa”. O MIR ainda esclarece que o melhor procedimento é um “edital único para cada Unidade de Pesquisa, aplicando-se a reserva de vagas de 20% para cada cargo”, mas permite equivocadamente o sorteio para a “definição da reserva de vagas a partir das especialidades”.
Para os candidatos negros de Manaus que afirmam terem sido lesados pelo Inpa, a manobra do sorteio por especialidade burlou o cumprimento efetivo da Lei de Cotas no concurso público. O órgão federal não promovia um certame há 13 anos.
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Candidata negra em vaga de PcD

Para a pesquisadora amazonense Wanessa da Costa Nascimento, as evidências comprovam que o Inpa violou a legislação vigente de política de ações afirmativas em concursos públicos. Por ser uma das cotistas prejudicadas pelo sorteio, ela ingressou com uma ação na vara federal contra o Inpa, em dezembro de 2024, ao ser excluída da lista de aprovados mesmo após alcançar a primeira colocação na sua especialidade no certame.
No caso de Wanessa Nascimento, que ficou em primeiro lugar para o cargo de pesquisadora, com atuação em Psicologia Ambiental e Educação Ambiental, o sorteio do Inpa tinha colocado previamente sua especialidade na vaga reservada para Pessoas com Deficiência (PcD). Isso antes da abertura das inscrições para o certame.
“Eu fiz todas as fases do concurso e, no final, eu estou aprovada em primeiro lugar na vaga P46 [código da especialidade no certame do Inpa]. Só que minha vaga não foi sorteada para [candidatos] pretos e pardos, mas sorteada para PcD. Qual foi o maior problema? O Inpa fez um sorteio [das 12 vagas para cotas raciais] antes de ter os candidatos pretos e pardos [inscritos], contrariando uma decisão do STF que diz que não podem sortear as vagas”, explicou Nascimento, que é Doutora em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia.
Em apoio à luta da pesquisadora Wanessa Nascimento e de outros candidatos negros eliminados pelo sorteio no concurso do Inpa, o Fórum Permanente de Afrodescendentes do Amazonas (Fopaam) emitiu uma nota de repúdio pela forma que o órgão federal conduziu o certame. No documento, encaminhado aos Ministérios da Justiça (MJSP); da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI); de Direitos Humanos (MDH) e da Igualdade Racial (MIR), em Brasília (DF), o Fopaam acusa o Inpa de utilizar “subterfúgios tomando por base a Nota Técnica do Ministério da Igualdade Racial Nº 62/2023/DPA/SEPAR/MIR, como forma de lavar as próprias mãos” em relação ao cumprimento efetivo da Lei de Cotas Raciais.
Wanessa também buscou na esfera política uma tentativa de reparação do instituto na nomeação dos cotistas. Depois de denunciar no MIR a restrição pelo Inpa de candidatos negros às vagas reservadas por lei e da pasta não tomar qualquer providência, a pesquisadora solicitou apoio do senador Plínio Valério (PSDB-AM) para cobrar novamente o ministério.
Em resposta ao parlamentar, o MIR admitiu que o “sorteio entre especialidades [realizado pelo Inpa no concurso] não representa orientação normativa deste Ministério [da Integração Racial]” e “tampouco [existe] respaldo jurídico para adoção dessa prática”. Entretanto, a pasta se isentou novamente ao declarar não possuir “competência legal para normatizar ou intervir diretamente nos procedimentos de concursos públicos” e que uma “intervenção direta do Ministério da Igualdade Racial em casos específicos, como o do concurso do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia INPA (Edital nº 01/INPA/MCTI), encontra limitações constitucionais”.
O que já disse o Inpa sobre as denúncias do concurso?
No dia 6 de junho, o Inpa informou, pelas redes sociais, que o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) publicou no Diário Oficial da União (DOU) a autorização para nomeação dos aprovados no concurso do Edital Nº 1 – Inpa-MCTI/2023. Serão 51 pesquisadores da carreira em ciência e tecnologia e 12 tecnologistas de desenvolvimento tecnológico.
O Inpa garantiu que atendeu no certame o que prevê a Lei de Cotas Raciais e confirmou também que as vagas não ocupadas por Pessoas Pretas ou Pardas (PPP) foram “revertidas para a ampla concorrência, porém dentro da respectiva especialidade/área de atuação (cargo)”. Neste caso, para os candidatos brancos aprovados.
Sobre as denúncias no Ministério Público Federal (MPF) e no MIR e ações judiciais movidas por candidatos, o Inpa afirmou que “comprovou nos meios competentes que as mesmas são improcedentes”.