O Supremo Tribunal Federal (STF) deve decidir na próxima quarta-feira (18/10) um dos temas mais atuais e intrigantes do Direito de Família: a chamada “Lei do Golpe do Baú”.
O Supremo deve avaliar se a lei que obriga pessoas de mais de 70 anos a se casarem em regime de separação de bens é constitucional.
O julgamento sobre a “Lei do Golpe do Baú” tem repercussão geral, o que significa que a decisão que for tomada valerá para processos de divórcio ou inventários em andamento em todo o país que envolvam casamentos de pessoas com mais de 70 anos.
A regra que obriga o regime de separação total de bens para casamentos com pessoas de mais de 70 anos foi instituída em 2010, dentro do Código Civil, para prevenir o que se convencionou chamar de “golpe do baú” — expressão pejorativa, de cunho machista, usada para definir quando uma mulher se casa com um homem mais velho com o intuito de ficar com sua herança.
A ideia era, para além de supostamente proteger o patrimônio da pessoa idosa, também preservar a herança dos filhos.
O caso está no STF começou na cidade de Bauru, no interior de São Paulo. Um casal composto por um homem e uma mulher mantiveram uma união estável de 2002 a 2014, ano em que ele morreu.
À época, a primeira instância reconheceu a mulher como herdeira, mas ela acabou perdendo o processo quando os filhos do marido recorreram ao Tribunal de Justiça de São Paulo. Lá aplicou-se o regime de separação de bens, uma vez que ele já tinha mais de 70 anos quando a relação foi selada. Na peregrinação por Justiça, o caso foi parar no Superior Tribunal de Justiça e, agora, no STF.
Segundo a advogada Marilia Golfieri Angella, sócia-fundadora do Marília Golfieri Angella – Advocacia Familiar e Social, especialista em Direito de Família, Gênero e Juventude, mestre em Processo Civil pela Faculdade de Direito da USP, a discussão extrapola a questão da proteção do patrimônio. Para ela, esse debate precisa ser feito do ponto vista da autonomia da pessoa idosa.
O próprio Estatuto da Pessoa Idosa foi alterado em julho deste ano para a substituição as palavras “idoso” ou “idosos” por “pessoa idosa” ou “pessoas idosas”, respectivamente. “As recentes discussões a respeito deste caso em julgamento no STF caminham no mesmo sentido daquelas destinadas ao estudo da dignidade humana da pessoa idosa e da necessidade de garantia de maior respeito e autonomia dessa parcela da população”, afirma.
De acordo com a especialista no tema, quando a lei presume, de forma indistinta, a absoluta incapacidade das pessoas maiores de 70 para decidir sobre o regime patrimonial aplicável às suas uniões familiares, sejam elas por meio do casamento formal ou da mera união estável, “a regra afronta diretamente a autonomia destas pessoas, ocorrendo um esvaziamento da capacidade natural de decidir sobre os atos mais banais da vida civil supostamente em prol da proteção patrimonial”.
“Em verdade, a norma que buscava promover a proteção patrimonial da pessoa, quiçá de uma possível herança, age em desfavor da autonomia e do respeito da vontade da pessoa idosa, ainda mais atualmente, com o avanço dos pactos sociais e da medicina, que promovem aumento da expectativa de vida e fazendo com que pessoas com setenta anos ainda estejam completamente ativas e plenamente conscientes de seus atos”, analisa.
Como ocorre no caso posto em julgamento pelo STF, o casal de idosos viveu por mais de 10 anos junto e, a partir do momento da morte do marido, seus filhos começaram a discussão contra a companheira com finalidade puramente patrimonial.
“O que acaba acontecendo é justamente como no caso do STF: a companheira cuida no final da vida, muitas vezes assumindo importante função de cuidado e, após a morte, os filhos deixam-na sem nada”, completa.
Sobre a necessidade de se observar o caso também por um viés de gênero, Marília explica que “há desrespeito não só ao que o pai provavelmente desejaria em vida, que seria a proteção de sua companheira, mas possível desrespeito à dignidade desta mulher, que sofre o luto e enfrenta uma nova disputa contra a família. Há discriminação etária, ante o desrespeito da vontade do pai, e de gênero, a qual precisa ser analisada adequadamente pela sociedade, pelo legislativo e pelo Poder Judiciário a partir da ótica do novo Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, lançado pelo CNJ recentemente”.
Da Agência Brasil