Menos de 200 quilĂŽmetros separam os lagos TefĂ© e Coari, no interior do estado do Amazonas. As duas ĂĄreas estĂŁo causando preocupação na comunidade cientĂfica por causa de botos mortos.
Esses dois corpos d’ĂĄgua que desembocam no SolimĂ”es, um dos rios que mais tĂȘm sofrido com a seca que se alastrou pela AmazĂŽnia nos Ășltimos meses, sĂŁo tĂŁo parecidos que Ă© possĂvel confundi-los.
âA Ășnica diferença Ă© que o Coari tem um canal muito mais curto atĂ© chegar ao MĂ©dio SolimĂ”esâ, destaca a oceanĂłgrafa Miriam Marmontel, lĂder do Grupo de Pesquisa em MamĂferos AquĂĄticos AmazĂŽnicos do Instituto de Desenvolvimento SustentĂĄvel MamirauĂĄ (IDSM).
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As semelhanças são tantas que o drama vivido no primeiro se repetiu, porém em menor escala, no segundo.
âDesde 23 de setembro, registramos 155 carcaças de botos-cor-de-rosa e tucuxis no Lago TefĂ© e 23 no do municĂpio vizinho. Mas, tenho certeza de que houve mortes em outros lugares porque existem mais de 50 lagos na regiĂŁoâ, alerta a pesquisadora. âĂ a primeira vez no mundo que o calor, a crise climĂĄtica, mata mamĂferos aquĂĄticos dessa maneira. O que estĂĄ acontecendo na AmazĂŽnia Ă© equivalente ao que estĂĄ ocorrendo no Ărtico com morsas e ursos polares.â
Se no Ărtico os animais estĂŁo morrendo por conta do derretimento de geleiras, na AmazĂŽnia uma das consequĂȘncias mais sĂ©rias das mudanças climĂĄticas para a fauna aquĂĄtica Ă© o aumento da temperatura dos corpos hĂdricos, que em 2023 foi agravado pelo Oceano AtlĂąntico Tropical Norte muito aquecido e um fenĂŽmeno de El Niño, gerando uma estiagem sem precedentes no bioma.
Dos 62 municĂpios do Amazonas, por exemplo, 60 estĂŁo em estado de emergĂȘncia, segundo a Defesa Civil. Mais de 600 mil pessoas foram prejudicadas
âSecas e cheias extremas vĂŁo acontecer com cada vez mais frequĂȘncia e intensidade. E a tendĂȘncia Ă© que a situação na regiĂŁo amazĂŽnica piore, pois a expectativa Ă© de que no ano que vem o El Niño seja ainda mais forteâ, salienta Miriam.
âBotos sĂŁo perfeitamente adaptĂĄveis ao movimento das ĂĄguas na cheia, eles se deslocam com uma flexibilidade tremenda na floresta alagada para se alimentar. Mas para a seca eles nĂŁo estĂŁo adaptados. Reverter esse cenĂĄrio nĂŁo depende de nĂłs, pesquisadores, depende de toda a humanidade se mobilizarâ.
Cerca de 10% da população de botos do Lago TefĂ© foi perdida em apenas uma semana, enquanto a mĂ©dia de encontro de carcaças era de uma ou duas por mĂȘs, frisa Miriam, uma das maiores especialistas do paĂs no assunto. Ela e outros pesquisadores ainda investigam a razĂŁo da discrepĂąncia entre as espĂ©cies mortas.
Das 155 carcaças registradas no local, 84,5% são cor-de-rosa (Inia geoffrensis) e 15,5% são tucuxis (Sotalia fluviatilis), em geral os mais vulneråveis.
Miriam pontua, no entanto, que o sistema respiratĂłrio dos botos-cor-de-rosa Ă© mais frĂĄgil.
âVenho fazendo este trabalho desde 1993 e nas atividades de campo presenciei muitos com ruĂdos ao respirar. AnĂĄlises histolĂłgicas e ultrassonogrĂĄficas tambĂ©m comprovaram muitos casos de pneumonia e parasitos nos pulmĂ”esâ, relata.
âEntĂŁo, outros fatores relacionados ao clima podem ter pesado no contexto atual. Em 28 de setembro, dia em que a temperatura da ĂĄgua chegou a quase 40°C na Enseada do Papucu e que documentamos 70 mortes, a qualidade do ar estava pĂ©ssima devido Ă s queimadas intensas e a umidade estava em 50%, quando neste perĂodo do ano costuma variar entre 80% e 90%â.
Botos mortos por estresse térmico
Ayan Fleischmann, lĂder do Grupo de Pesquisa em GeociĂȘncias e DinĂąmicas Ambientais na AmazĂŽnia do IDSM, acrescenta que a hipĂłtese mais provĂĄvel Ă© que, em decorrĂȘncia do estresse tĂ©rmico, os animais pararam de se alimentar e, por isso, perderam a capacidade de regular a temperatura corporal.
âEm situaçÔes assim, a pressĂŁo sanguĂnea sobe e pode haver um colapso cerebral, como congestĂŁo ou derrame. Mas ainda estamos aguardando as anĂĄlises de histopatologia para bater o marteloâ, diz.
Isso explicaria o fato de indivĂduos principalmente da espĂ©cie cor-de-rosa terem sido vistos desorientados no Lago TefĂ©, fazendo movimentos circulares, como se nĂŁo soubessem para onde ir momentos antes de perderem a vida.
âSe o aumento da pressĂŁo sanguĂnea for confirmado nos exames, teremos descoberto da pior forma possĂvel o limite de temperatura que os botos suportam. Por isso, os prĂłximos anos nos apavoramâ, completa o pesquisador.
ApĂłs seguidas aferiçÔes de temperatura em diferentes horĂĄrios, profundidades e locais, o IDSM concluiu que a Enseada do Papucu, um dos pontos preferidos dos botos da regiĂŁo pela abundĂąncia de peixes, drena ĂĄgua de uma ĂĄrea bem rasa do Lago TefĂ©, uma vasta lĂąmina que estĂĄ medindo apenas entre 20 e 30 centĂmetros de altura e que tem potencial para esquentar muito sob o sol escaldante.
Um verdadeiro caldeirão que ultrapassou os 40°C em 28 de setembro, o dia mais mortal para os animais, quando a temperatura da ågua bateu 39,1°C na Enseada.
âAcima do Papucu medimos quase 41°C, mas a temperatura foi baixando em seu curso atĂ© chegar a 33°C ou 32°C no Rio SolimĂ”es. Vimos que o fluxo da ĂĄgua foi dissipando o calorâ, diz Fleischmann.
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A partir do drama que se iniciou em TefĂ©, o IDSM criou uma rede de parceiros para monitorar outros lagos na AmazĂŽnia e jĂĄ conta com pesquisadores em municĂpios como Manaus e Iranduba, no Amazonas, e SantarĂ©m, no ParĂĄ.
Em Coari, por exemplo, a equipe da UFAM (Universidade Federal do Amazonas), liderada pela professora Waleska Gravena, tem monitorado o lago trĂȘs vezes por semana. AlĂ©m disso, estĂŁo sendo instalados sensores automĂĄticos para aferir a temperatura da ĂĄgua e amostras foram coletadas para anĂĄlise fĂsico-quĂmica em laboratĂłrio.
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âAssim como a temperatura do ar bate recordes, a hipĂłtese Ă© que agora a temperatura da ĂĄgua tambĂ©m tenha batido. Das mediçÔes que temos disponĂveis, nunca havĂamos chegado ao patamar atual na AmazĂŽniaâ, comenta Fleischmann.
Sem agentes infecciosos
Dentre os resultados documentados atĂ© o momento estĂŁo 124 animais necropsiados e amostras de tecidos e ĂłrgĂŁos enviadas para laboratĂłrios especializados distribuĂdos pelo Brasil.
Dezessete foram avaliados com anĂĄlises histolĂłgicas e nĂŁo hĂĄ indĂcios de agentes infecciosos relacionados como causa primĂĄria da mortalidade.
Os diagnĂłsticos moleculares de 18 indivĂduos tambĂ©m deram negativo para os agentes infecciosos Morbillivirus, Toxoplasma, Clostridium, Mycobacterium e Pan-fĂșngico, associados a mortes em massa de cetĂĄceos.