É do grandioso Rio Negro que sai a água que abastece as residências de mais de dois milhões de manauaras. Habitat inóspito para os mosquitos viverem e se reproduzirem, o gigante amazônico abriga fauna aquática diversa e atrai turistas e cientistas de vários países encantados e interessados na beleza e riqueza de um dos rios símbolo da Amazônia.
Além da exuberância natural, o que esse rio também não consegue esconder é sua acidez extrema, que é imprescindível à fertilização das florestas e à diversidade da vida aquática, mas fora dos parâmetros ideais ao consumo humano. Para deixá-la potável, o tratamento é pesado e inclui toneladas de produtos químicos e a retirada diária de cerca de 70 toneladas de húmus.
Material orgânico composto pelos sedimentos do solo e da floresta, o húmus mistura-se à água ao longo dos mais de dois mil quilômetros de extensão do rio. É o que dá a coloração negra que batiza o rio amazônico. Rico em nutrientes para o solo, o húmus adquire aspecto um tanto desagradável no processo de tratamento de potabilidade da água. Ele fica similar a um lodo.
Entre o leito do rio e as torneiras das casas, em Manaus, são cerca de 90 minutos de preparo da água nas duas estações de tratamento da região conhecida como Ponta do Ismael, no bairro Santo Antônio, zona oeste da cidade. O complexo começou a ser erguido pelos ingleses em 1906 e, hoje, é considerado um dos maiores e mais modernos do segmento no Brasil.
Além dele, a concessionária Águas de Manaus também capta e faz o tratamento de água em outras duas Estações de Tratamento (ETAS), no bairro Mauazinho, na zona sul, e na Ponta das Lajes, na Colônia Terra Nova, zona norte. Há também outros 52 Centros de Produção de Águas Subterrâneas (CPAs) em operação.
Só nas duas ETAS da Ponta do Ismael, que é responsável por abastecer 80% de Manaus, são processados 6 mil litros de água, por segundo. Isso equivale a 200 piscinas olímpicas destinadas exclusivamente a abastecer a população da capital amazonense.
Meu amigo ‘negão’
O supervisor de Tratamento da Águas de Manaus, Marcelo Avelino, sabe de cor como a água do Rio Negro é preparada para o consumo. Ele explica sobre a captação e detalha a história do serviço de água na capital com a desenvoltura de quem vive essa rotina há mais de duas décadas.
Para explicar o que a estrutura grandiosa de tratamento de água realiza, ele usa três recipientes com água. Cada um ilustra uma das etapas, começando com a coloração mais escura até ficar transparente.
Avelino considera o Rio Negro um amigo pessoal de longa data. Trabalhando por um longo tempo na Ponta do Ismael, converteu-se em especialista e testemunha viva da história recente do serviço de abastecimento de água e esgoto na capital. Também viu a evolução tecnológica no setor.
“Hoje, nós temos aqui tecnologia de ponta, por exemplo, com inversor de frequência que modula a velocidade de motor das bombas. O computador calcula, vai fazendo um balanço. Nós vimos a tecnologia acontecer. Antes tínhamos de fazer tudo no manual”, diz.
Das capitais brasileiras, Manaus foi a que mais aumentou seus níveis de abastecimento total de água, conforme o Instituto Trata Brasil. A cidade apresentou crescimento de 9,71 pontos percentuais entre 2016 e 2020. Hoje, o serviço é considerado universalizado e atende 97,5% da população manauara.
Quando Avelino começou a trabalhar na Ponta do Ismael, levar água para as casas manauaras era responsabilidade da Cosama (Companhia de Saneamento do Amazonas). Ele vivenciou a privatização, em 2000, e trabalhou nas empresas que operaram o sistema desde então. A Águas de Manaus é a quarta que cuida do sistema, e está fazendo isso desde 2018.
“O tratamento da água do Rio Negro é diferenciado e a gente recebe muitos especialistas de fora do estado, que não conhecem como funciona, e que vêm trazer novidades tecnológicas e de produtos. Aí eu pergunto: vocês já conversaram com o ‘negão’? Tratar água aqui é diferente do que é feito em qualquer lugar e tem que entender desse rio”, diz.
Tratando o Rio Negro
Não é que o Rio Negro seja temperamental. A particularidade do tratamento está relacionada às próprias características químicas da água. Maior afluente da margem esquerda do Rio Amazonas, o Negro é considerado um dos maiores rios do mundo. Nasce na Colômbia e alcança sua plenitude em território brasileiro.
Além da coloração escura, o húmus também é o responsável pelo seu alto grau de acidez, com o pH da água ficando entre 3,8 e 4,9, conforme explica o químico e doutor em solo e nutrição pela USP (Universidade de São Paulo), Sérgio Bringel.
“A região amazônica tem três tipos de água. Rios de água branca, como é o caso do rio Solimões. Tem o Tapajós, que possui uma coloração esverdeada e composição intermediária, com o pH menos ácido, e o Rio Negro. Ele vem de uma região geológica diferente, é ácido, não tem sais minerais, é baixíssimo. Falta cálcio, por exemplo, e o pH da água é em torno de 4”, salienta Bringel, que é pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
Sem tratamento adequado, a acidez da água do rio seria capaz de corroer encanamentos em poucos meses. O tratamento também faz a adequação da qualidade da água aos padrões de potabilidade estabelecidos pelo Ministério da Saúde.
Nos reservatórios das estações de tratamento, a água recebe um choque químico para ficar limpa e boa para o consumo das pessoas. Nesse processo, usam-se produtos como o sulfato de alumínio, a cal, o cloro e flúor. Eles ajudam, por exemplo, a separar o húmus, regular o pH da água e desinfetá-la, eliminando os microrganismos que podem causar doenças.
Depois do uso de produtos químicos, a água é submetida a vários processos. Um deles é o de decantação, onde o húmus é, enfim, separado. “Só nesse processo já são removidas 90% das impurezas da água”, acentua Avelino.
Na Ponta do Ismael, depois de decantada e filtrada, a água é armazenada em um tanque fechado para receber uma nova dosagem de cal e cloro até, finalmente, ficar no padrão adequado para o consumo.
“O nosso papel aqui não é só tratar água, mas também levá-la para a população de Manaus em todos os sentidos. Isso aqui é saúde, nós cuidamos de mais de dois milhões de habitantes por dia”, orgulha-se Avelino.
Impacto na saúde pública
Água de melhor qualidade chegando em mais pessoas significa economia para os cofres públicos, por exemplo, com saúde. É o que mostram os dados do Instituto Trata Brasil.
Em uma década, Manaus conseguiu reduzir quase pela metade os gastos em saúde pública destinados a atender pessoas acometidas por doenças de veiculação hídrica, entre as mais conhecidas, amebíase, diarreia e o rotavírus.
Em 2011, o poder público teve de desembolsar R$1,7 bilhão para cuidar de pessoas que contraíram esse tipo de doença na cidade. Em 2021, o gasto foi estimado em R$908 milhões. Em 2020 e 2019, o valor empregado para esse fim ficou em torno de R$700 milhões.
Mas não foram só os cofres públicos que sentiram alívio em gastos nesse período. As unidades de saúde também observaram uma queda significativa no número de casos atendidos. As internações por doenças transmitidas pela água diminuíram na década, saindo de 24.983 casos, em 2011, para 9.402 atendimentos, em 2021, ainda de acordo com os dados do Trata Brasil.
Segundo a Águas de Manaus, além de cuidar da água para fazê-la chegar nas condições ideias de consumo, as equipes técnicas também monitoram a qualidade do líquido que chega às torneiras em toda a cidade, fazendo coletas de amostras em hospitais, clínicas dentárias, escolas, restaurantes e outros locais definidos como estratégicos.
Estima-se que mais de 30 mil análises sejam realizadas todos os meses afim de assegurar que a água esteja mesmo boa e seguindo as diretrizes federais de potabilidade, que considera mais de 80 parâmetros que vão da transparência do líquido à ausência de metais e bactérias. Tanto rigor visa assegurar o cumprimento das leis e fazer da água um vetor de saúde da população.
Investimentos de quase R$ 5 bi
Nos últimos cinco anos, a Águas de Manaus afirma ter investido cerca de R$ 1 bilhão no sistema de abastecimento de água e esgoto da capital amazonense. A meta agora é universalizar o esgotamento sanitário, uma vez que quase 100% da população já conta com água de forma regular nas torneiras.
Atualmente, a cobertura de esgoto é de cerca de 26%. Mas o uso efetivo é mais baixo que isso. Até o fim de 2023, a concessionária planeja a implantação de cerca de 80 mil metros de rede coletora.