O uso de uma combinação de técnicas, entre elas o espalhamento de raios-X, foi capaz de mostrar, pela primeira vez, em escala molecular, os danos que o alisamento ácido, conhecido como escova progressiva, causa ao córtex, à cutícula e às camadas lipídicas da fibra capilar. Das amostras analisadas no Instituto de Física (IF) da USP, as mechas de cabelos mais danificadas foram aquelas que passaram pelo processo de descoloração seguidas de progressiva, que apresentaram um aumento de quatro vezes na porosidade dos fios, resultando em cabelos ressecados, quebradiços, com frizz (aquela aparência de arrepiado quando se vai à praia ou a locais mais úmidos) e pouca elasticidade.
O cabelo humano é constituído por várias estruturas. O córtex fica na camada intermediária com maior quantidade de queratina, água, lipídios, melanina e outras proteínas responsáveis por características como forma, cor, resistência mecânica (força) e elasticidade; a cutícula, parte mais externa do cabelo, confere proteção aos fios através da sobreposição de camadas proteicas; e os lipídios são um tipo de gordura, a oleosidade natural que mantém os fios macios, brilhantes, flexíveis e impermeabilizados com uma camada protetora que os deixa menos vulneráveis a danos externos, além de minimizar a perda de água e nutrientes.
“Os tratamentos cosméticos, como a descoloração e o alisamento, interagem com o cabelo em nível molecular, induzindo alterações em seus componentes e modificando suas propriedades físico-químicas e mecânicas das fibras”, explica ao Jornal da USP a autora da pesquisa, a engenheira química Cibele Rosana Ribeiro de Castro Lima, pesquisadora em pós-doutorado no Grupo de Fluidos Complexos do IF. Os fios crespos, enrolados e cacheados se tornam lisos, a cor perde o pigmento e a cutícula degradada perde a capacidade de absorver água e nutrientes, deixando os fios mais hidrofílicos e porosos, exemplifica.
Cibele Castro Lima – Foto: Arquivo pessoal
“Os profissionais que realizam esses procedimentos químicos e, principalmente, as pessoas que se submetem a eles, não fazem ideia dos potenciais danos causados na estrutura interna dos fios e da perda da resistência por conta do tratamento”, destaca o supervisor da pesquisa.Cristiano L. P. de Oliveira, professor do Departamento de Física Experimental do IF
Na pesquisa, foi utilizado um ativo contendo ácido glioxílico associado à carbocisteína que, embora não esteja na “Lista de ativos permitidos para produtos cosméticos para alisamento ou ondulação de cabelos” da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ainda é muito utilizado no mercado cosmético e pouco explorado na literatura científica, relata Cibele Lima.
Em 2023, a Anvisa atualizou a lista com os ativos permitidos para produtos cosméticos para alisamento: ácido tioglicólico e seus sais, ésteres de ácido tioglicólico, hidróxido de sódio ou potássio, hidróxido de lítio, cálcio hidróxido associado ao sal de guanidina, sulfitos e inorgânicos, bissulfitos e pirogalol e ácido tiolático. Estes, embora alterem as propriedades estruturais da fibra capilar, passaram pelos testes de segurança e toxicidade em relação à saúde de quem aplica e de quem faz uso dos produtos cosméticos. As mechas de cabelos naturais utilizadas no estudo foram obtidas pela pesquisadora de um fornecedor dos Estados Unidos. Elas foram divididas em três grupos: no primeiro, passaram por descoloração; no segundo, alisamento e, no terceiro, as mechas passaram pelos dois procedimentos e foram descoloridas e alisadas.
Cristiano de Oliveira – Foto: Arquivo pessoal
Segundo o professor Oliveira, a relevância de estudos nessa área se dá não só pelo fato de tratamentos cosméticos proporcionarem bem-estar às pessoas, uma vez que contribuem para alcançar melhoria da aparência estética, mas também porque o mercado da beleza é gigante e gera muitos empregos, diretos e indiretos, com tecnologia e inovação sempre em crescimento, diz. O Brasil ocupa a segunda posição entre os países que mais lançam produtos nesta área e está em quarto lugar entre os países que mais consomem produtos de beleza no mundo, segundo dados da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Abihpec).
Os resultados da pesquisa, feita em colaboração com a Universidade de Copenhague, Dinamarca, estão no artigo publicado no Journal of Applied Cristallography, disponível em acesso aberto, tendo sido escolhido para ser capa da edição de agosto de 2023.
Métodos experimentais complementares
Na física, há uma série de métodos experimentais e teóricos que fornecem informações relevantes sobre um objeto ou um sistema a ser estudado, como, por exemplo, novos materiais, sistemas biológicos, entre outros, diz o supervisor da pesquisa. “O trabalho sobre danos nas estruturas capilares em cabelos alisados foi feito com uma metodologia inovadora combinando diversas técnicas (espalhamento de raios-X, termos analíticos, espectroscopia de massas e termogravimetria) de modo a compreender as propriedades globais das fibras capilares em um grande intervalo de escalas de tamanho”, diz.
Pela técnica de espalhamento de raios-X, por exemplo, a análise das fibras capilares ocorreu da seguinte forma: um dispositivo incide feixes de raios-X sobre algumas mechas de cabelos que seriam analisadas. Quando os fótons de raios-X penetram e interagem com as estruturas internas das amostras, os raios que nesse momento já estão espalhados atravessam as estruturas do cabelo formando do outro lado uma imagem bidimensional, onde se obtém informações detalhadas das alterações ocorridas nas microestruturas das fibras capilares.
Para simular uma situação real em que a pessoa se submeta à progressiva e em outro momento volte ao cabelereiro para escovar o cabelo com secador ou use uma prancha, a pesquisadora acrescentou ao experimento de espalhamento de raios-X uma fonte de calor para verificar o que aconteceria no caso das fibras capilares serem novamente aquecidas.
Os dados experimentais foram coletados pela central multiusuário do IF, que conta com equipamentos de última geração para estudos de espalhamento e difração de raios X. A figura abaixo mostra um esquema sobre como são realizados os experimentos.
Resultados
O espalhamento de raios X identificou, de maneira inédita, que o alisamento ácido causa alteração nas camadas lipídicas, gorduras que formam o complexo de membrana celular que seriam responsáveis por manter os fios macios, brilhantes, flexíveis e impermeabilizados contra agentes externos. “Em torno da fibra capilar, há a formação de uma espécie de filme hidrofóbico que confina as moléculas de água dentro da fibra e dificulta a entrada de produtos cosméticos para seu interior, mesmo em temperaturas aquecidas.
“O resultado imediato da escova progressiva é lindo porque o produto forma um filme em torno da superfície do cabelo, deixando os fios brilhantes, alinhados, sedosos, livres de frizz, de volume e ondulações. Entretanto, é uma falsa impressão de que os cabelos estejam saudáveis e tratados.”
Cibele Castro Lima
Segundo a pesquisadora, as mechas descoloridas (uma única vez) e alisadas foram as mais danificadas em suas estruturas do córtex e da cutícula. “Isto aconteceu porque o clareamento causa perda de proteínas e lipídios importantes na fibra capilar, deixando o cabelo mais sensível a outros procedimentos de transformação”, diz.
“Vale ressaltar que a grande variação entre os valores de pH destes procedimentos sobrepostos [a descoloração em torno de 10 e o alisamento em torno de 1] acarreta danos ainda mais severos aos cabelos, aumentando ainda mais o porcentual de porosidade total das fibras”, relata.
A pesquisa ainda demonstrou outras alterações importantes nos cabelos, como a desnaturação da proteína alfa-queratina (perda estrutural de sua forma original), que dá força e elasticidade à fibra capilar. Neste caso, o dano é diretamente proporcional ao aumento da temperatura ou tempo de permanência da prancha em contato com os cabelos. Quanto maior a temperatura, maior será o dano causado tanto ao córtex quanto à cutícula, e essa mudança de estrutura é irreversível”, avalia a engenheira química.
Mais informações: e-mail [email protected], com Cibele Rosana Ribeiro de Castro Lima; e-mail [email protected], com Cristiano Pinto de Oliveira
*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado