A peça “Huma/” provocou, ao longo de junho e julho, diversas emoções e sentimentos no público que prestigiou o espetáculo, realizado nos fins de semana no Parque dos Bilhares, na avenida Constantino Nery, sentido bairro-Centro, na zona sul de Manaus. Neste sábado (22), a partir das 15h15, acontecerá a última apresentação da temporada de pré-estreia da montagem.
O texto foi criado pelo artista autônomo Francisco Rider e conta com o artista não-binário Leo Scantbelruy no elenco. A peça contou com o apoio da atriz Koia Refkalefsky na preparação de ator. A confecção de figurinos é de Preta Scantbelruy. A assistência de produção é assinada por Ana Carolina Souza, o design gráfico por Bosco Leite e os registros fotográfico e audiovisual foram realizados por Robert Coelho.
Os ingressos custam R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia-entrada) e são vendidos apenas no local do evento. Para assistir à peça, o público tem de se dirigir, até no máximo às 15h15, ao estacionamento que dá acesso ao anfiteatro e à pista de patins do Parque dos Bilhares, na avenida Constantino Nery, no sentido bairro-Centro, na zona centro-sul de Manaus. No local, haverá uma equipe do espetáculo que recepcionará e encaminhará o público para o ponto exato do parque onde a montagem será encenada.
Cenário real
Um dos aspectos que mais impactou a plateia foi a escolha do local para a encenação da peça. Ao invés de um palco tradicional, conhecido como palco italiano dotado de uma caixa cênica com cortinas, coxias e equipamentos de iluminação, a produção de “Huma/” optou por um espaço público e que é considerado “underground”, porque costuma ser um local onde há, esporadicamente, a circulação de mendigos e dependentes químicos.
“Gostei da ideia de utilização do espaço sob a ponte do Parque dos Bilhares, que remete a um estado de abandono, de necessidade de cuidado e que se estende às pessoas e à cidade, de uma forma geral, em especial por estar às margens de um igarapé totalmente poluído”
COMENTOU A JORNALISTA ROSÂNGELA ALANIS.
Francisco Rider explica que este novo trabalho artístico foi concebido para ser exibido em espaços abertos, como pontes e viadutos, além de diversos outros locais públicos. “A temporada de pré-estreia está ocorrendo no Parque dos Bilhares porque ‘Huma/’ é um espetáculo para e com o ambiente urbano manauara. A obra cênica é construída junto com o local onde é apresentada, impactando a obra em si”.
Imersão no ‘palco’
Outra característica marcante bastante elogiada foi a imersão do público no espetáculo. Ao contrário das plateias tradicionais, no qual há cadeiras e/ou poltronas confortáveis e ar-condicionado, os espectadores assistem ao espetáculo em pé e, em vários momentos, seguem o ator pelo cenário real, que é composto por um igarapé poluído, um terreno acidentado com pedras e troncos de árvores, uma mureta, colunas de sustentação da ponte, além de barro e poeira.
“Também considero a experiência muito contemporânea, pois o expectador se insere no ‘palco’ onde acontece a apresentação. Tive uma sensação de estranhamento e desconforto, que considero positiva para um espectador, levando a várias reflexões que extrapolam o tema específico abordado no espetáculo”
ANALISOU ROSÂNGELA ALANIS.
Este mesmo aspecto de imersão foi o que mais se destacou para o jornalista Jony Clay Borges. “De cara, o que me encantou em ‘Huma/’, como em outras performances de Rider, é a experiência imersiva. Diferente de uma peça de teatro ou filme, em que o escuro e o conforto subtraem as sensações para concentrar a percepção do espectador no palco ou tela, a performance exige entrar/compartilhar do espaço de representação, com seu cenário belo/imundo, fétido, quente e sujeito à interferência sonora externa”.
Jony Clay ressalta outro aspecto que contribuiu para a provocação de emoções e sentimentos do público: o prólogo itinerante do espetáculo, no qual Francisco Rider conduz o público do local de recepção, que é o estacionamento do parque, até o ponto onde o ator já está em cena concentrado aguardando a chegada dos espectadores. No trajeto, as pessoas têm a oportunidade de observar de vários ângulos o cenário onde o espetáculo se desenvolve, pois atravessam a ponte, descem escadas, atravessam uma rua e passam por cima de uma mureta para finalmente chegar ao ponto de encenação.
“No caso de ‘Huma/’, o ritual da caminhada até o local evoca também o teatro da Antiguidade e, também, o teatro de Zé Celso Martinez, que conheci, da turnê ‘Dionisíacas’, que passou por Manaus, em 2010, e que, naturalmente, era também marcado por essa cênica ritualística e performática”
COMENTOU JONY CLAY.
Força dramática
“Huma/” é uma peça na qual uma mulher isolada vive em um “mundo-peste”, mas não só biológico, acima de tudo o da política da morte que nos devora cotidianamente, conforme explica o autor do drama. “’Mundo-peste’ é uma metáfora para todas as formas de violências, agressões, preconceitos e fobias contra corpos ‘indesejados’ pelos padrões normativos. Um dia, a personagem Huma decide romper com esse enclausuramento e vai para a rua, se deparando com os vírus invisíveis da peste. Então, como uma mulher-cidadã, que cresceu na ditadura civil-militar (1964 a 1984), ela se manifesta”.
E para dar vida à personagem, Francisco Rider convidou Leo Scantbelruy, um jovem artista de 27 anos, mas que já conta com extenso currículo artístico. Ele é artista trans manauara com mais de dez anos de carreira em artes cênicas, tendo atuado em diversos estados do Brasil e no exterior. Ele gerencia o espaço cultural Casa Passarinho, no centro de Manaus e integra o Movimento Levante MAO de reivindicações de políticas públicas para a categoria trabalhadora e autônoma das artes. Formou-se em Licenciatura em Teatro pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Entre seus prêmios e festivais, destacam-se o Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna, Prêmio Manaus de Conexões Culturais, Prêmio Pesquisa e Investigação Cênica do Festival Breves Cenas de Teatro, Residência Jovens Criadores no AM, Festcine Amazônia, Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp, Festival Emergentes (Espanha), Festin Açu (Bolívia).
A sua interpretação causou impacto nos espectadores devido à força dramática mostrada em cena. “A atuação de Leo é expressiva, a figura magnética, o corpo e a fisicalidade são uma extensão do texto falado. A narrativa é evocação íntima do que todos vivemos, e, também, um retrato político do que todos vivemos. Uma personagem que é também a humanidade toda, e a saga dela é a nossa saga. A cena da quase morte foi a que achei mais impactante, evocando tanto a pandemia como a necropolítica fazendo suas vítimas. A desinfecção que era um ritual diário do isolamento, a morte. Mas também depois foi bonito o renascer e adormecer para outro dia, agora desnuda e transparente”, avaliou Jony Clay.
A jornalista Shirley Assis também elogiou o trabalho de atuação de Leo Scantbelruy. Ela comentou que, apesar de jovem e de ser bem franzino, o ator se transformou quando estava em cena, demonstrando boa técnica teatral com uma força dramática condizente com a força da personagem. Ela também elogiou os temas e subtemas apresentados no espetáculo, como a violência, o preconceito, a política de bastidores, a poluição do meio ambiente, dentre outros.
“Sob vários aspectos o espetáculo é libertador. Ao mesmo tempo que me fez reviver a dor, a aflição e o medo sentido na pandemia, a peça me deu esperança de que, por meio da luta e de reconstrução de valores, é possível renascer. No final, quando a personagem citou tantas pessoas foram mortas por não terem o comportamento padrão exigido pela sociedade, isso me fez refletir sobre os motivos dessa violência continuar, mesmo após tantas campanhas e tanta discussão sobre o preconceito”
DISSE SHIRLEY ASSIS.
Leo Scantbelruy disse que o processo de criação da personagem foi “extremamente desafiador, com muitas adversidades, desde a complexidade da personagem e da dramaturgia, a criação da obra em meio a um espaço de abandono, a persistência que artistas precisam ter para levar a cabo suas criações em meio a tantas ausências de políticas públicas. Mas apesar de tantas dificuldades estou com a sensação de dever cumprido pois, ainda assim, estamos concluindo a temporada com êxito, expandindo de alguma forma a percepção das pessoas sobre as possibilidades de ocupações na cidade. Que esses comportamentos se multipliquem e que as paisagens se transformem, para melhor, eu espero”.
Teatro experimental
Francisco Rider ressaltou que está feliz com o resultado do trabalho. “Foi maravilhoso ter a Cidade Manaus e sua decadência, com igarapés poluídos e monumentos da época ‘áurea’ do Ciclo da Borracha em completo abandono, como um dos personagens da peça ‘Huma/’. Assim, a peça ressignificou e trouxe vida e arte para algo totalmente invisível para a população e para a administração pública”.
Ele também destacou o caráter experimental da montagem. “Tivemos um público composto realmente de pessoas que amam o teatro experimental e estão abertas para vivenciar uma peça que é um rito- ato-denúncia fora da caixa preta; um teatro que hojeriza modelos interpretativos e dramatúrgicos novelísticos e Netflixzados. Nesse sentido, foi um sucesso, pois nos mostra o quão necessário é o teatro corpo a corpo, para a saúde mental do espectador, tanto quanto para a reflexão política, crítica e poética”.
A montagem tem o apoio da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa (SEC) e da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semmas).