Instrumentista Guilherme de Camargo adapta obras preservadas em manuscrito achado em 2008, nos Estados Unidos
Acaba de ser disponibilizado nas plataformas digitais e em formato físico o CD Cupido é Louco, do arranjador, produtor, compositor e instrumentista Guilherme de Camargo. O disco apresenta 14 faixas inspiradas pelas modinhas compostas por Domingos Caldas Barbosa e Jerónimo Francisco de Lima entre 1790 e 1800. O álbum conta com a participação do clarinetista Luca Raele, das cantoras Fernanda Ribeiro e Ludmilla Thompson e do produtor Alvaro Collaço.
Guilherme de Camargo, que é bacharel em Violão, mestre e doutor em Musicologia Histórica pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e um especialista em cordas dedilhadas antigas, explica como o projeto teve início: com um telefonema de Collaço, quando este soube que o musicólogo Ricardo Bernardes havia encontrado, em 2008, um manuscrito inédito de modinhas de Domingo Caldas Barbosa na Biblioteca do Congresso, em Washington.
No total, foram encontradas 19 canções datadas do final do século 18, que hoje estão reunidas e encadernadas no Livro Primeiro. De Letras e Cantigas Galantissimas para debertimento das Senhoras Portuguezas no Campo. Camargo, que já havia trabalhado com gravações de outras modinhas durante a sua carreira, aceitou a proposta do produtor de assumir os arranjos e a direção musical do projeto. “Sem esse CD, essa música estaria fadada a se perder, talvez para sempre”, acredita o instrumentista.
De acordo com Camargo, as modinhas são um importante gênero musical popular, sobretudo para a sociedade portuguesa (onde nasceu o gênero, no meio rural) e a brasileira, sendo fundamentais para compreender o entretenimento da época em que foram compostas.
No Brasil, Domingos Caldas Barbosa (1740-1800) foi o pioneiro das modinhas. Filho de pai português e mãe angolana, o compositor e poeta luso-brasileiro desenvolveu as suas habilidades de escrita e interesse pelos gêneros da modinha e do lundu (ambos com forte apelo popular) ainda em sua juventude, que viveu no Rio de Janeiro. Em 1763, quando viajou para Portugal, disseminou a modinha brasileira no país. Já em seus últimos anos de vida compôs, com o compositor português Jerónimo Fernando de Lima, as músicas que inspirariam a criação do álbum.
“O frontispício do manuscrito indica que as canções eram dedicadas ao deleite das mulheres portuguesas no campo. Isso era uma maneira comum de se referir a um ou outro tipo de trabalho musical”, explica Camargo. “Havia trabalhos dedicados à música cortesã, à música urbana, à música rural etc. Neste caso, a temática das letras fala sobretudo da Nova Arcádia Lusitana, um movimento de resgate dos ideais pastoris gregos, e, portanto, se relaciona a uma música de caráter rural.”
Assim como feito por Domingos três séculos atrás, Camargo pretende entreter com as suas composições – agora, no entanto, com inovações. “O trabalho não pretende ser uma recriação musicológica, mas sim uma adaptação dessa música do passado para que ela possa ser aproveitada com prazer nos dias atuais”, alega. Durante o processo criativo, o instrumentista se inspirou em diversas de suas referências musicais. “Desde a música folk americana, Peter, Paul and Mary, Jim Croce, James Taylor, entre tantos outros, como os Beatles, até a nossa música brega e querida, como Sidney Magal, e a nossa música caipira, sempre rica, como Renato Teixeira, Almir Sater e muitos outros.”
E não são apenas os novos arranjos que tornam Cupido é Louco um trabalho tão particular de Guilherme de Camargo. A equipe responsável pelo CD também carrega um intimismo expressivo em relação ao artista. Ele conta que Luca, Fernanda e Ludmilla, além de excelentes músicos, são grandes amigos seus. “As queridas Fernanda Ribeiro e Ludmilla Thompson estiveram sempre dispostas a escutar as ideias e colaborar com suas personalidades musicais. Luca Raele, um clarinetista excepcional, colaborou sobretudo com a leveza e a originalidade dos seus improvisos, marcantes neste trabalho”, comenta. Os arranjos “arejados”, assim definidos pelo instrumentista, além de suas colaborações de cordas dedilhadas (violões de náilon, aço e violas caipiras), completam as melodias. O título Cupido é Louco, que também nomeia uma das modinhas, foi uma decisão natural entre os colaboradores do disco.
“O Guilherme criou arranjos muito criativos, com total liberdade de usar estilos posteriores ao século 18”, conta Luca Raele, que também aproveitou o projeto para inovar com as suas próprias contribuições. “Ele deixou tudo em aberto. Me entregou as músicas com a melodia e cifra e não escreveu nada específico arranjado para eu tocar. Esperava que eu fizesse improvisos e a gente fosse determinando caso a caso, ao longo dos ensaios, o que eu iria tocar”, relata.
Formado pelo Departamento de Música da ECA, o clarinetista diz que Cupido é Louco foi a primeira gravação em disco na qual tocou com o clarinete alto, embora já tivesse utilizado o instrumento anteriormente. “Primeiro eu pensava em tocar a clarineta si bemol, que é mais comum, mas depois percebi que seria interessante usar um instrumento mais grave”, explica. “O clarinete alto funcionou, em alguns momentos, como se fosse uma música barroca, fazendo um contínuo e ajudando no acompanhamento que o Guilherme fazia usando o violão. Acabei gravando a maior parte das músicas com ele.”
Ouça no link abaixo a música Cupido é louco, uma das 14 faixas do CD de mesmo nome lançado por Guilherme de Camargo, Fernanda Ribeiro, Ludmilla Thompson e Luca Raele.
TEXTO: Jornal da USP