Apesar de ser uma doença com tratamento relativamente simples e elevado percentual de sucesso, a sífilis tem-se propagado de forma preocupante na população brasileira.
Entre os anos 2010 e 2020, o número de casos registrados no país aumentou em 53%. A ocorrência dessa enfermidade, de origem bacteriana, é também muito antiga no território hoje ocupado pelo Brasil. Um estudo realizado com ossos e dentes revelou um caso de sífilis congênita no início do Holoceno – período que se iniciou há quase 11,5 mil anos e se estende até o presente.
O estudo foi conduzido por uma equipe multidisciplinar da Universidade de São Paulo (USP) e os resultados foram publicados no International Journal of Osteoarchaeology.“É o caso mais antigo de sífilis encontrado no Homo sapiens em todo o mundo.
Nós o identificamos em ossos e dentes de uma criança, de aproximadamente 4 anos de idade, que viveu na Lapa do Santo, região de Lagoa Santa, em Minas Gerais, há, no mínimo, 9,4 mil anos.
As alterações ósseas e dentárias observadas são típicas da sífilis congênita, uma das manifestações clínicas da sífilis venérea”, diz à Agência FAPESP Rodrigo Elias Oliveira, pesquisador do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP) e primeiro autor do artigo.Formado pela Faculdade de Odontologia (FO-USP), Oliveira trabalha desde 2006 com arqueologia, tendo-se doutorado na área sob a orientação de Walter Neves.
Hoje, é um dos três coordenadores do Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva (LAAAE-USP).A Lapa do Santo é um dos sítios arqueológicos mais importantes do Holoceno inferior na América com registros de presença humana desde 12 mil anos antes do presente.
Os crânios de mais de 200 esqueletos encontrados na região de Lagoa Santa apresentam características morfológicas distintas das populações nativas americanas atuais e semelhantes às de Luzia (o fóssil humano mais antigo descoberto na América do Sul, com datação compreendida entre 12,5 mil e 13 mil anos).“Uma característica dessa população é que seus indivíduos apresentam um número de cáries dentárias superior ao da média de outros povos caçadores-coletores do mundo.
Nossos estudos mostraram que isso teria sido decorrência de uma dieta alimentar mais rica em carboidratos. Porém, mesmo considerando esse dado, os dentes da criança do sepultamento 20 chamaram minha atenção pela quantidade excessiva de cáries, muito acima da média da população da Lapa do Santo”, conta Oliveira.E prossegue: “Quando me deparei com isso, eu disse ao Walter Neves e ao Pedro da Glória, que conduziam os trabalhos na área, que devia ter acontecido alguma coisa além da simples doença de cárie nessa criança. Isso foi em 2016.
Publicamos na ocasião um artigo tratando das cáries em Lagoa Santa de maneira geral. Mas, a partir de então, comecei a investigar esse caso particular mais a fundo. E passei a procurar outras evidências de alguma enfermidade que pudesse ter afetado os dentes daquela forma”.
O pesquisador informa que, além das cáries, constatou a existência de alterações morfológicas nos dentes que ainda iriam nascer, mas já estavam presentes nos ossos dos maxilares. E verificou também alterações importantes no crânio, como a ausência dos ossos nasais e lesões nas faces externas e internas de ossos da calota craniana. Perceptíveis a olho nu, essas anomalias foram confirmadas por radiografias e tomografias.
Além disso, Oliveira descobriu ainda alterações nos chamados ossos longos, como um dos fêmures, que se encontrava bastante modificado.“Juntando todas as peças do quebra-cabeça, cheguei ao diagnóstico de sífilis congênita. Então, fui buscar na literatura estudos que pudessem confirmar ou desmentir minha hipótese. E assim passei pelo menos quatro anos trabalhando no caso, até conseguir publicar um artigo consistente”, relata Oliveira
.A divulgação jornalística muitas vezes dá a ideia de que o processo científico é uma avenida reta e omite toda a engenhosidade necessária para chegar a um resultado. Este estudo apresenta um aspecto interessante a respeito. Isso porque não foi possível datar diretamente os ossos da criança do sepultamento 20. Mas os pesquisadores encontraram outro sepultamento feito logo acima, o 21. “O buraco que os habitantes da época cavaram para o sepultamento 21 acabou cortando a cova em que estava o sepultamento 20. Isso deixou uma marca nos sedimentos e também arrastou os membros do lado direito da criança.
A ossada do sepultamento 21 nós conseguimos datar diretamente, em 9,4 mil anos. Dessa forma, obtivemos uma idade mínima [pelo menos 9,4 mil anos] para os remanescentes da criança”, relata Oliveira.Assim, foram reunidas evidências bastante robustas de um caso de sífilis congênita no continente há quase 10 mil anos. Essa enfermidade a criança certamente herdou de sua mãe, pois a bactéria causadora, a Treponema pallidum, é capaz de atravessar o saco amniótico e contaminar o feto, produzindo todo um quadro de alterações morfológicas ainda no contexto intrauterino e após o nascimento.“Os estudos baseados em mutações do DNA sugeriam uma presença muito antiga da sífilis na América. Mas, até o nosso trabalho, não havia nenhuma confirmação material disso. Outros achados foram datados em épocas bem posteriores, alguns milhares de anos mais tarde”, argumenta Oliveira.
A Lapa do Santo é um formidável manancial de descobertas arqueológicas. Pesquisas criteriosas realizadas no local já modificaram paradigmas sobre o processo de povoamento do continente americano. E, como indica o presente estudo, muita informação relevante ainda poderá ser obtida.
O trabalho em pauta contou com apoio da FAPESP por meio de Auxílio a Jovens Pesquisadores concedido a André Strauss, professor do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE-USP) que também assina o texto.
O artigo An Early Holocene case of congenital syphilis in South America pode ser acessado em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1002/oa.3180.
TEXTO: José Tadeu Arantes | Agência FAPESP