Enquanto indígenas Yanomami sofrem com a falta de medicamentos fornecidos pelo SUS para tratamento de malária e verminoses, sobra oferta desses remédios nos garimpos ilegais instalados dentro da própria Terra Indígena Yanomami.
A informação é da InfoAmazonia e Vocativo, que identificaram em redes sociais o comércio de Artesunato+Mefloquina e Cloroquina, produzidos pela Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz) e pelo Ministério da Saúde, e que deveriam ser distribuídos gratuitamente pela rede pública para o tratamento da malária.
A reportagem teve acesso a mensagens em grupos de WhatsApp utilizados por garimpeiros da região, onde esses medicamentos são livremente comercializados por preços entre R$ 150 e R$ 200.
A falta desses medicamentos, segundo especialistas, contribuiu para o agravamento da crise humanitária que os Yanomami enfrentam. Só em 2022, foram registrados 11.530 casos confirmados de malária no Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Yanomami, mas, segundo constataram as autoridades, não havia medicamentos o suficiente para atender a demanda de indígenas acometidos pela doença. Os dados foram divulgados na última semana pelo Ministério da Saúde após uma missão especial constatar a situação de emergência sanitária no território.
Os índices de infecção e de mortalidade infantil na TI vão na contramão do aumento de investimentos feitos pelo governo federal na saúde dos Yanomami. Entre 2020 e 2022, o DSEI Yanomami foi o que mais recebeu verbas em todo o Brasil, tendo acesso a mais de R$ 200 milhões em recursos, segundo aponta inquérito do Ministério Público Federal (MPF) instaurado para apurar desvio de recursos públicos na compra de medicamentos.
O inquérito do MPF identificou que apenas uma parte muito pequena dos remédios foi efetivamente distribuída aos indígenas Yanomami.
Segundo a investigação, o esquema inseriu registros falsos no Sistema Nacional de Gestão da Assistência Farmacêutica para simular a entrega de remédios ao DSEI-Y.
A fraude teria a colaboração de indicados políticos nos distritos sanitários, os DSEIs, que são os responsáveis pelo tratamento e distribuição de medicamentos aos indígenas que vivem em terras indígenas: “As irregularidades decorrem da nomeação de coordenadores distritais por critérios políticos ao invés de técnicos”, aponta o MPF.
Um homem identificado pela reportagem como Jonata Prado Dantas, que se diz maqueiro hospitalar, atua como uma espécie de atravessador e é um dos que anuncia os medicamentos do SUS nos grupos de WhatsApp. Após meses de acompanhamento nas redes, a reportagem da InfoAmazonia identificou que Prado negocia diversos tipos de remédios, utensílios para garimpo e até mercúrio, que é utilizado na extração ilegal do ouro.
A lista de remédios oferecidos por Dantas ilegalmente no grupo de garimpeiros inclui remédios do SUS para malária, como o Artesunato+Mefloquina e a Cloroquina, entre outros medicamentos de assistência básica, como Benzetacil, Dexametasona e Amoxicilina.
Durante a investigação para esta matéria, a reportagem descobriu que Dantas foi preso em flagrante pela Polícia Militar de Roraima no ano passado, suspeito de tentar negociar a compra de um rifle calibre 32 em Boa Vista (RR). Ele e o suposto vendedor da arma foram abordados após uma denúncia e acabaram confirmando a negociação da arma que disseram “ser antiga”. Na casa de Dantas, a polícia relatou ter encontrado equipamentos de rádio transmissor e “uma caixa com diversos remédios para malária e testes para malária que, segundo ele, vendia para garimpeiros”.
Em outro áudio obtido pela reportagem, um “fornecedor”, que não foi identificado, afirma ter os remédios do SUS, Artesunato+Mefloquina com ele no garimpo: “tenho 80 doses, porém, esse material tá aqui comigo no garimpo”.
Entre 2020 e 2022, segundo dados do Ministério da Saúde, mais de 13,6 mil comprimidos de Artesunato+Mefloquina, que são fabricados pela Fiocruz, foram encaminhados para tratamento de malária na TI Yanomami. No mesmo período, foram distribuídas 639 mil doses de cloroquina, remédio que é usado para combater a malária, mas que, durante a pandemia, foi usado pelo governo para tratar a Covid-19, mesmo sem eficácia comprovada. (Veja a lista completa de medicamentos enviados ao DSEI-Y).
“Os curuminzinho tudo com malária”
Mas, ao que tudo indica, os medicamentos para tratamento de malária e de outras doenças não chegaram aos Yanomami. Em um dos pedidos de socorro enviados ao MPF, um indígena Yanomami relatou a situação calamitosa da doença entre crianças e a falta de remédios para tratamento.
Os procuradores do MPF apontam, também, que a falta de cobertura de tratamento para verminose deixou mais de 10 mil crianças desassistidas e que entre 2019 e 2022, mais de 300 crianças Yanomami, vítimas de desnutrição e de malária, foram removidas de suas comunidades para tratamento de média ou alta complexidade em Boa Vista.
Em dezembro do ano passado, o MPF recomendou a nomeação de um interventor para o DSEI Yanomami que seguisse critérios técnicos e a destituição de coordenadores que atuavam na terra indígena, o que só ocorreu este ano, após a posse do presidente Lula (PT).
O interventor também deverá investigar as denúncias apresentadas, assumir o controle dos contratos já firmados e apresentar um cronograma de ações para garantir o pleno restabelecimento do estoque de medicamentos e sua dispensação aos estabelecimentos de saúde da TI Yanomami recomendou do Ministério Público Federal
“O interventor também deverá investigar as denúncias apresentadas, assumir o controle dos contratos já firmados e apresentar um cronograma de ações para garantir o pleno restabelecimento do estoque de medicamentos e sua dispensação aos estabelecimentos de saúde da TI Yanomami”, recomendou o MPF. No sábado, o presidente Lula esteve em Roraima, onde anunciou a emergência em Saúde Pública de Importância Nacional. Um Comitê Nacional foi implantado sob coordenação da Secretaria de Saúde Indígena (SESAI), vinculada ao Ministério de Saúde. A intervenção federal deve durar 90 dias para atuar no território, com possibilidade de prorrogação.
Remédio produzido pela Fiocruz
A última entrega de Artesunato+Mefloquina da Fiocruz para o Ministério da Saúde ocorreu em 2020. No caso da Cloroquina, apesar de trazer a marca do SUS, a instituição não conseguiu confirmar se é produção própria, já que há outros fornecedores da medicação para a rede pública.
“Temos a rastreabilidade de todo medicamento fabricado pelo Instituto, assim como o local e a data de entrega, conforme determinação legal. Entretanto, após o recebimento dos lotes pelo MS [Ministério da Saúde]– no almoxarifado central ou secretarias estaduais e municipais de saúde –, essa rastreabilidade só poderá ser realizada pelo próprio MS”, informou a Fiocruz.
No último dia 18 de janeiro, após questionamento da reportagem, a Fiocruz encaminhou ofício alertando o Ministério da Saúde sobre as suspeitas de irregularidades.
“Diante da gravidade e criticidade dessa notificação e tendo Farmanguinhos entregue toda a produção ao Ministério da Saúde, vimos a necessidade de informar-lhes a fim de que medidas possam ser tomadas para que o rastreio da distribuição desse medicamento possa ser feito e apurado o fato relatado”, diz trecho do ofício encaminhado às autoridades de Saúde.
Procurado pela reportagem, Jonata Prado Dantas confirmou por WhatsApp que vendia os medicamentos contra a malária por R$ 150 a caixa. Ao saber que se tratava de uma reportagem, e ao ser questionado sobre a venda ilegal, ele deletou as mensagens e bloqueou sua conta para a equipe.
Conversas apagadas por Jonata Prado Dantas |
A reportagem também procurou o Ministério da Saúde e a SESAI para comentar os possíveis desvios de medicamentos do SUS e quais medidas devem ser tomadas. Mas não teve resposta até o fechamento desta matéria.
O MPF informou que vai apurar os possíveis desvios de medicamentos do SUS para os garimpos na Terra Indígena Yanomami.
Garimpeiros e a malária
Os relatos feitos à InfoAmazonia por profissionais de saúde que estiveram na TI Yanomami são estarrecedores. “Estive na terra indígena Yanomami, no mês de julho e novembro do ano passado fazendo ações de saúde, principalmente relacionada à malária, tivemos que levar, além de medicamentos, lâminas e lancetas, pois as equipes locais não tinham esse material!”, afirma Hernane Guimarães Júnior, epidemiologista e professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA).
Segundo Guimarães, a malária só pode ser tratada com esses medicamentos e, na falta de um deles ou mesmo na falta de quantidade suficiente, o tratamento fica comprometido, ocasionando, também, uma possível resistência da doença e mais transmissão local.
“Além dos medicamentos de malária, as equipes não tinham antitérmico, antibiótico e etc. Levamos 90% dos medicamentos básicos para atenção primária em saúde”, afirma o epidemiologista.
Além dos medicamentos de malária, as equipes não tinham antitérmico, antibiótico e etc. Levamos 90% dos medicamentos básicos para atenção primária em saúde
Hernane Guimarães Júnior, epidemiologista e professor da UFOPA
A malária é uma doença infecciosa, febril e aguda, transmitida pela picada de mosquitos do gênero Anopheles infectados pelo parasita do gênero Plasmodium. Ela também pode ser transmitida da mãe para o bebê durante a gestação. No caso dos Yanomami, a doença era considerada controlada até a intensificação da invasão garimpeira nos últimos quatro anos. Como transitam por diferentes garimpos da Amazônia, os garimpeiros são apontados como agentes de circulação da doença nas áreas mais isoladas da floresta.
O infectologista André Siqueira, pesquisador do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz) e que integra a missão do Ministério da Saúde ao território Yanomami, diz que um dos principais objetivos das equipes de saúde é identificar os infectados e tratá-los o mais rápido possível para, assim, conter o avanço da malária no local.
“O ideal é que as pessoas sejam tratadas nas primeiras 48 horas após o início dos sintomas, o que diminui a possibilidade de transmissão. E o abastecimento de medicamentos é prioridade neste momento”, afirma Siqueira. “Os garimpeiros circulam [infectados] com parasitas [da malária] nessas áreas, que eram áreas com a malária controlada. Mas,com a presença desses garimpeiros, ocorreu uma alteração do ambiente social e muitas vezes foi o fator que culminou também na falta de assistência médica”, completa o infectologista.
Segundo o governo federal, mais de 30,4 mil indígenas convivem com mais de 20 mil garimpeiros na Terra Indígena Yanomami. A atividade garimpeira está contaminando os rios que abastecem as comunidades locais, destruindo a floresta e afetando as condições de sobrevivência dos Yanomami.
BREVE HISTÓRICO DA INVASÃO
O território Yanomami começou a ser invadido na Ditadura Militar, durante a década de 70, com a construção da estrada perimetral norte (1973-76)
Programas de colonização da Ditadura Militar acentuaram a invasão nos anos 1978 e 1979 com fazendeiros se instalando dentro da TI com títulos expedidos pelo INCRA
A partir de 1987, o limite leste do território Yanomami foi amplamente invadido por garimpeiros levando graves conflitos para a região
Em 25 de maio de 1992, o presidente Fernando Collor de Mello homologou a Terra Indígena Yanomami sem fazer a desintrusão do território.
Em 1993, garimpeiros ilegais realizaram o Massacre de Haximu deixando 16 Yanomamis mortos. Foi o primeiro e único crime do Brasil a ser julgado como um genocídio.
Desde então, o escândalo provocado pelo Massacre do Haximu reforçou a necessidade de uma permanente assistência e proteção do Estado brasileiros com as comunidades Yanomami em Roraima
Fonte: Info Amazônia