O Ministério Público Federal (MPF) apresentou ação civil pública para obrigar a União e o Estado do Amazonas a implementarem o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, no prazo de 90 dias. A estrutura faz parte do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, criado a partir de protocolo internacional assinado pelo Brasil para combater a prática no país.
A ação foi apresentada hoje (31/03) à Justiça Federal, 58 após o regime militar ter sido instituído no Brasil, em 1964. O golpe militar deu início a uma ditadura de 21 anos, marcada pela violação de liberdades individuais, da liberdade de expressão, de direitos políticos e civis. Também marcou o período a utilização, por agentes do Estado, de métodos de violência física e psicológica, e a prática da tortura foi uma das ferramentas mais utilizadas para repressão dos opositores do regime.
O MPF ressalta, na ação, que o mecanismo estadual deve ser implementado com a estrutura, os recursos orçamentários e o número de cargos necessários ao adequado funcionamento do órgão, com a realização de visitas periódicas – no mínimo, anuais – a todas as unidades prisionais e a todos os locais de custódia – como delegacias de polícia – do Amazonas. A ação do MPF inclui pedido de multa de R$ 100 mil para cada um dos réus – União e Estado do Amazonas – em caso de descumprimento.
Prevenção e combate à tortura
O Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura foi instituído pela Lei n. 12.847/2013, com o “objetivo de fortalecer a prevenção e o combate à tortura, por meio da articulação de seus integrantes, dentre outras formas, permitindo as trocas de informações e o intercâmbio de boas práticas”.
O sistema nacional é formado pelo Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, com função principal de prevenir e combater a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. O Mecanismo Nacional possui atribuições relacionadas aos estabelecimentos prisionais e de custódia.
A composição do sistema é definida no Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, assinado pelo Brasil e promulgado pelo Decreto nº 6.085/2007. Há também os comitês e os mecanismos estaduais de prevenção e combate à tortura, que atuam em colaboração com os órgãos nacionais.
Amazonas espera pelo Mecanismo há seis anos
No Amazonas, o Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura foi criado em 2016, por meio do Decreto nº 37.178/16. A manutenção e o custeio do comitê estão sob responsabilidade da Secretaria de Estado de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania (Sejusc).
Entretanto, o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura nunca foi implementado, sob o argumento de falta de recursos financeiros. Desde 2016, o MPF acompanha o caso por meio de procedimento administrativo, tendo recebido diversas informações do Estado do Amazonas sobre a impossibilidade de implantar o mecanismo estadual, em virtude da falta de recursos para contratar funcionários para a atividade.
De acordo com o MPF, a ausência de iniciativa do Estado do Amazonas para implementar o mecanismo estadual descumpre a legislação nacional e tratados de direitos humanos aos quais o Brasil aderiu. “Observa-se que a ausência de política para tanto, bem como a alegação de falta de recursos e de pessoal, já vem desde antes da pandemia de covid-19. Destarte, muito embora o combate à doença deva ser uma prioridade do poder público, observa-se que este não é o principal motivo pelo qual, até a presente data, o MEPCT não foi implementado no Amazonas”, cita o órgão, na ação.
O MPF aponta ainda que a União também tem o dever de fomentar a criação e o aprimoramento dos sistemas estaduais de combate e prevenção à tortura, inclusive com base em recomendações e medidas indicadas por órgãos do sistema interamericano de direitos humanos e pelo Subcomitê da Organização das Nações Unidas (ONU) para Prevenção à Tortura. No caso do Amazonas, identifica-se a omissão federal, sem atuação efetiva para estabelecer o mecanismo amazonense de prevenção e combate à tortura durante todos esses anos.
Panorama carcerário no estado – Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional, o Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo. No ano de 2019, havia no país 755.274 pessoas privadas de liberdade, com índice de superlotação em 170,74%. No Amazonas, o número alcançava 12.069, com índice de 291,20 presos/internados a cada 100.000 habitantes. Apesar disso, o número de vagas no estado era de 3.511.
Após inspeção realizada em 2016 no Amazonas, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura apontou, em relatório, problemas relacionados ao modelo de terceirização da gestão do sistema prisional, recomendando a mudança imediata da forma de gestão, sob o risco de uma tragédia ocorrer, considerando a postura omissa do poder público.
Um ano depois, em 2017, houve a maior chacina do estado, com a morte de 56 pessoas no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj). No ano seguinte, em 2018, após novas inspeções, o mecanismo estadual constatou que muitas recomendações não haviam sido acatadas pelo governo estadual. Uma nova chacina ocorreu em 2019, com mais de 55 mortos em três unidades prisionais de Manaus.
Relatório do mecanismo nacional registrou ainda a desassistência em saúde, insuficiência contratual em relação ao número de refeições distribuídas e indício de assédio praticado contra os profissionais terceirizados nas unidades prisionais.
A ação civil pública apresentada pelo MPF tramita na 3a Vara Federal, sob o n. 1006388-65.2022.4.01.3200.