Porto, Portugal | Depois que Rosalía lançou LUX, o álbum que transforma santas católicas em ícones pop ao misturar eletrônica com canto devocional, ficou evidente que o sagrado voltou a ocupar o centro da cultura contemporânea. E, no Porto, essa fusão ganhou um sotaque que não vem da Espanha, e sim do Piauí. É aqui que Shivão, DJ e produtor brasileiro, agita as noites portuguesas ao misturar espiritualidade afro-brasileira com música eletrônica.
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Guilherme Dias, 26 anos, chegou a Portugal em 2023 carregando uma bagagem onde se misturavam controladoras, memórias e um chamado interior. Ele conta que tudo começou ainda na adolescência, nas raves de psytrance de Teresina. “Eu comecei a me conectar muito com a história do psytrance, com aquela reverência aos deuses indianos… ali eu me aproximei do hinduísmo, da espiritualidade”, lembra. Foi também ali que nasceu o nome que hoje o identifica. “Meu amigo olhou pra mim e disse: a partir de hoje tu é o Shivão. E ficou.”

Quando desembarcou no Porto, o choque cultural foi imediato. Ele ri ao lembrar: “Eu nunca ouvi tanto funk quanto ouvi aqui. Nem na minha cidade!” Para existir na cena, precisou se reinventar, se aproximar de outros imigrantes, construir parcerias, entender o gosto local e, principalmente, não abrir mão da própria identidade. Nesse processo, descobriu algo fundamental: os brasileiros estavam mudando a noite portuguesa por dentro. “Os imigrantes trouxeram bagagem. Estão agregando. E tem muita gente aqui aprendendo a valorizar isso.”
Foi nesse ambiente efervescente que nasceu EBÓ, seu EP de estreia, concebido como uma oferenda. O nome surgiu de maneira instantânea. “Eu olhei a primeira faixa e disse: vai se chamar EBÓ. Era um alimento que eu precisava. A gente estava meio perdido, e o processo do EP nos nutriu. Todo mundo saiu com novas ideias, mais motivado, mais conectado consigo mesmo.”
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Na tradição iorubá, ebó é comida espiritual. É alimento para ancestrais, cura para o corpo, clareza para a mente. E foi exatamente isso que o EP se tornou: um ritual íntimo de reconexão, um gesto coletivo de cura. A primeira faixa, Logun, nasce de uma parceria com Bumi97, amigo e percussionista que bate o tambor com a força de quem guarda memórias antigas. “Eu disse pra ele: vamos criar uma percussão, mas eletrônica. Ele bateu o tambor e eu pensei: é isso, é esse caminho.”
O disco inteiro é costurado como se fosse um rito contínuo: tambores, pontos, batidas, ecos, ancestralidade e eletrônica dissolvidos na mesma vibração. Nada é gratuito. Cada som parece obedecer à lógica do transe. “Se eu não falasse da minha espiritualidade, eu não estaria falando de mim”, afirma Shivão, consciente de que sua música nasce da fé, da vivência e do corpo.

Ao mesmo tempo, há ali a marca do Brasil que ele traz no peito: um Brasil que transforma forró em rave, tambor em sintetizador, brega em futurismo. “Tem gente querendo ouvir essa informação cultural que não é só Rio-São Paulo. É Norte, é Nordeste, é brega, é tecnobrega, é tambor.” Ele fala disso com a segurança de quem sabe que suas referências regionais não o limitam, ampliam.
Mesmo com o EP ainda fresco, Shivão já compõe novos sons, guiado pelo que descobriu dentro do próprio processo. “Eu quero criar música para hipnotizar. Para meditar na pista. Para colocar a pessoa em transe.” É um desejo quase manifesto: devolver à noite o seu caráter ritualístico. Transformar a pista num lugar de introspecção, de cura, de vibração espiritual.

Se Rosalía sacraliza o pop com santas renovadas, Shivão faz o caminho inverso: ele leva o sagrado afro-brasileiro para dentro da eletrônica contemporânea. E nesse encontro, descobrimos que o misticismo não é apenas tema. É prática, é corpo, é som.
Portugal já se acostumou a ver brasileiros como estudantes, trabalhadores, sobreviventes. Agora começa a enxergá-los como feiticeiros do som, criadores de atmosferas, condutores de energia. Shivão, com suas batidas que atravessam o Atlântico e suas referências que se alimentam da ancestralidade, mostra que a noite pode ser também um altar.

E talvez por isso seja impossível ouvi-lo sem sentir que algo se move, dentro e fora da pista. É espiritual. É eletrônico. É brasileiro. É EBÓ.


