Quando pensamos no Dia das Bruxas, talvez nos venha à mente a névoa dos filmes de Hollywood, os risos de crianças mascaradas, o som das folhas secas num outono cinematográfico. Mas raramente pensamos nelas: as bruxas reais, mulheres de carne, osso e pensamento, que existiram muito antes da fantasia. Porque o que hoje é festa, um espetáculo de consumo e entretenimento, já foi tragédia.
A palavra “caça às bruxas”, que hoje usamos na política para falar de perseguições ideológicas, nasceu da perseguição literal: da captura, da tortura e da execução de mulheres que ousaram ser diferentes. Entre os séculos XV e XVIII, de 40 a 60 mil pessoas, em sua maioria mulheres, foram mortas sob a acusação de bruxaria na Europa.

Em Portugal, a Inquisição, criada em 1536 a pedido de D. João III, tinha como foco os “cristãos-novos”: era crime ser judeu convertido ao cristianismo. Entre os corredores de pedra e os arquivos do Tribunal do Santo Ofício, em Lisboa, os nomes das mulheres acusadas de feitiçaria permanecem gravados, silenciosos, à espera de serem lembrados.
Foi esse silêncio que a artista Lola Ramos, brasileira de 31 anos, decidiu ouvir. Artista multimídia, formada em Artes Visuais pela Universidade de São Paulo (USP), Lola é uma dessas criadoras que misturam poesia e arqueologia. Escava histórias, memórias e símbolos. Em seu trabalho, ela reconecta as bruxas de cá às de lá: as portuguesas perseguidas pelo Santo Ofício às brasileiras silenciadas pela colonização.

“Eu percebi que a figura da bruxa está sempre ligada a narrativas anglo-saxônicas, como as bruxas de Salem. Então comecei a me perguntar: e as nossas bruxas? Quais são as histórias das bruxas brasileiras?”, conta.
Pesquisando, encontrou pouquíssimos registros. Isso a motivou a investigar mais e acabou indo para o doutoramento com esse foco: entender a história da bruxaria entre o Brasil e Portugal.
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“Vim em 2018 fazer o mestrado na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, já com interesse em pesquisar o feminino. Isso acabou me levando à questão da bruxaria, porque percebi que a história das bruxas brasileiras também é a história de Portugal.”
Lola começou sua jornada com o projeto Monstruosidades Diárias, no qual ilustrava criaturas que tricotavam, cozinhavam, dançavam, monstros que faziam coisas simples. O que começou como um exercício de desenho virou uma metáfora poderosa: os monstros eram reflexos de nós mesmos.

“Esses monstros são o outro, aquilo que a gente esconde de si. Quando os coloco em atividades banais, mostro que eles são mais próximos de nós do que imaginamos.”
Com o tempo, o monstro ganhou corpo e gênero. Tornou-se feminino, tornou-se bruxa. A transição foi natural: se o monstro é o outro, a bruxa é o outro mais temido. Em tempos em que mulheres ainda são reguladas pelo Estado, pelas leis, pela religião ou pelas redes sociais, o tema se mostra dolorosamente atual.

“As mesmas forças que queimavam mulheres na fogueira hoje tentam decidir o que elas vestem, se podem abortar, se podem falar. Ainda hoje há caça às bruxas. Em países da África e da Ásia, de forma literal. E em outros, de forma simbólica: o controle do corpo, o silenciamento, a desvalorização moral.”
Este ano, Lola apresentou sua primeira exposição individual, O Diabo, a Bruxa e Deus Todo-Poderoso, na Cisterna da Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Sete obras compuseram a mostra: bordados, instalações, objetos. Entre elas, uma peça em que a artista borda os nomes de 548 mulheres processadas por bruxaria em Portugal, extraídos dos registros do Tribunal do Santo Ofício.

“É uma forma de homenagear e trazer esses nomes de volta à luz. Eles estão lá, acessíveis, mas esquecidos. O mais interessante é que os nomes são muito atuais: Inês da Costa, Luísa Maria, Severina… Muitas visitantes diziam: ‘Esse é o nome da minha avó’ ou ‘da minha prima’. Essa conexão entre passado e presente foi muito forte.”
Entre Brasil e Portugal, entre o passado e o presente, o trabalho de Lola é um gesto de reconciliação. Reconciliação com as mulheres que vieram antes e com o que podemos aprender com elas. “Quem não conhece a história está fadado a repeti-la. E é o que vemos: ideias do século XIX sobre as mulheres continuam sendo ditas hoje, apenas com outra roupa.”

Ao unir pesquisa histórica e expressão poética, Lola transforma a arte em uma ponte: entre tempos, entre línguas, entre memórias, entre o sagrado e o profano, entre o medo e a liberdade. E talvez seja isso que as bruxas sempre foram: mulheres que ousaram cruzar pontes.
“Para o futuro, quero continuar conectando o público a esses temas de forma acessível, fora dos limites do mercado de arte. A arte pode unir Brasil e Portugal porque as duas culturas estão profundamente entrelaçadas. Resgatar essas histórias é reconhecer nossas ancestralidades e entender que muita coisa se repete. Há uma herança comum de repressão, mas também de resistência e de sabedoria popular.”
Enquanto escrevo, penso no quanto essa história ainda pulsa: nas rezas da minha avó, nas simpatias da vizinha, nas palavras que não se apagam. Crescer no Amazonas é crescer entre lendas, mitos indígenas, benzedeiras que curavam dores e rituais para afastar o “quebrante” ou o “mal-olhado”.
No Brasil, a ideia de “bruxaria” acabou se misturando a religiosidades populares e práticas afro-indígenas, que mais tarde deram origem a tradições como o candomblé e a umbanda. Em vez de pânico coletivo, há uma perseguição cultural e religiosa, marcada pelo racismo e pela imposição da fé católica europeia.
As bruxas nunca foram apenas figuras do passado. São as mulheres que resistem, criam e reinventam o mundo, mesmo que o mundo insista em queimá-las. Neste outubro, enquanto as vitrines vendem fantasias de chapéus e vassouras, há quem opte por lembrar que elas ainda estão aqui. E que talvez o verdadeiro feitiço seja esse: transformar dor em arte, silêncio em voz, e passado em permanência.

