Porto, Portugal | Em Portugal, há histórias que começam pequenas, quase tímidas, mas que carregam em si a força de atravessar os oceanos. É o caso de Amanda Fonseca, uma cozinheira paraense de 30 anos que conheci em um de seus eventos de cozinha pop-up independente. Para minha surpresa, o tema daquela noite era uma releitura de pratos amazônicos. Fui sem muitas informações, mas encontrei uma fusão cultural encantadora: brasileiros e portugueses reunidos em torno de pequenas porções que guardavam um sabor imenso do norte do Brasil.
O evento, chamado “Um Cheiro da Amazônia”, apresentava sabores amazônicos em versões contemporâneas. O tradicional peixe frito, por exemplo, ganhou nova forma no Katsu Sando de Peixe: um sanduíche de peixe empanado com molho de açaí. Já o pato no tucupi foi reinterpretado como uma empada com geleia de flor de jambu e vinagrete de cupuaçu. Pratos criativos, deliciosos e cheios de afeto, que conseguiram trazer de volta o gosto de casa.

Ela idealizou esses eventos há cerca de sete meses. São pequenos jantares, muitas vezes informais, que acabaram se tornando encontros muito disputados pela delicadeza das porções. Realizar esta edição com tema amazônico foi a forma que Amanda encontrou de preservar os sabores da culinária da Amazônia, mesmo com as dificuldades de encontrar ingredientes típicos do norte do Brasil em Portugal.
“Às vezes, em mercados africanos, dá pra achar algumas coisas, mas os ingredientes da Amazônia são muito difíceis de conseguir. Então, eu talvez não consiga servir um tacacá completo aqui, mas posso apresentar o sabor em outro formato. Como um caldo ou uma empada com jambu”, contou.
Amanda nasceu em Belém, cresceu em Manaus e depois passou pelo Rio de Janeiro e por Curitiba antes de se mudar para Portugal. Sua trajetória reflete a de muitos imigrantes do Norte do Brasil, que carregam consigo um conhecimento prático e experiências de vida marcantes. “Eu comecei vendendo sanduíches naturais com a minha mãe para pessoas da universidade. Eu tinha 16 anos quando esse interesse pela culinária começou”, relembra.

Mais tarde, aos 18, teve seu primeiro emprego formal em uma pizzaria em Manaus, onde percebeu que aprender pela prática seria seu caminho, já que os altos custos da faculdade de gastronomia no Brasil a afastaram dos estudos acadêmicos. Entre idas e vindas, a decisão de vir para Portugal surgiu tanto de uma curiosidade quanto da necessidade de tentar algo novo.
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No Porto, o primeiro emprego foi também o primeiro sopro de destino. Um colega a levou para uma entrevista e Amanda entrou para a equipe inicial de cozinheiros. Ali, mergulhou em novas técnicas, em gastronomia clássica, mas sentiu que ainda faltava algo. “A vida toda eu sempre aprendi na prática. Mas chegou num ponto aqui em Portugal que eu pensei: agora eu vou estudar. Fiz meu curso de gastronomia aqui e valeu a pena. A prática aliada à teoria abriu portas.”
Seus olhos brilham, no entanto, quando fala do estágio no Six Senses, hotel que mantém uma quinta própria, produção local e filosofia ecológica. “Eles não usam plástico na cozinha. E é algo que eu sempre estive muito conectada, porque lembro muito do Norte do Brasil, da Amazônia”. Essa noção de sustentabilidade, de respeito ao alimento e ao território, aparece como fio condutor nos pratos que hoje cria.
Tudo isso serviu para dar este passo decisivo: a criação dos pop-ups. Uma cozinha que é dela, autoral, livre. “Senti necessidade de mostrar um pouco do que eu sou, do meu trabalho. Eu queria liberdade criativa.” A estreia foi em março, em parceria com uma amiga de Curitiba, e o tema foi comida brasileira vegana, elaborada, mas servida de forma descontraída.

De lá pra cá, Amanda tem explorado diferentes inspirações: da Amazônia à Itália, de viagens recentes às lembranças afetivas. Contudo, mais do que cozinhar, Amanda acredita que a comida é também linguagem, convite, encontro. “Eu acho que deveria ter mais desses eventos aqui. A comida sempre uniu as pessoas, desde os primórdios. E é isso que eu quero continuar fazendo.”, afirma.
O que se percebe é que sua cozinha é, acima de tudo, narrativa: fala de suas origens, das ausências, dos aprendizados e do desejo de criar pontes entre Brasil e Portugal. Amanda sonha em ver mais fornecedores trazendo produtos amazônicos para cá, em ver mais restaurantes representando a verdadeira diversidade da gastronomia brasileira. “A culinária do Brasil não é só feijão preto, coxinha, pão de queijo. Eu adoro tudo isso, mas a culinária do Brasil é muito mais. É história. É também a culinária indígena, que precisa aparecer.”
No Porto, entre panelas e lembranças, Amanda Fonseca constrói sua própria travessia: do sanduíche natural na adolescência, da pizzaria em Manaus, dos restaurantes pelo Brasil, até os eventos que hoje movimentam a cidade. Um caminho que mostra que cozinhar vai muito além de transformar ingredientes em comida. É também transformar vivências em partilha, memórias em prato e saudade em sabor.
Ser imigrante, como ela sabe bem, é se provar três vezes mais, lutar para ser reconhecido e, muitas vezes, simplesmente existir no olhar do outro. E há pessoas com histórias e conhecimentos imensos, prontas para movimentar o mercado. Muitos carregam aquele espírito “hands-on”, aprendendo na prática, fazendo acontecer e transformando tudo ao redor.
A trajetória de Amanda lembra que as experiências que trazemos em nossas bagagens imaginárias podem valer muito mais do que tudo o que cabe em um avião. É também a prova de que não somos formados apenas pelo destino, mas, sobretudo, pelas escolhas e pelas práticas que construímos ao longo da vida.