Porto, Portugal — A música que nasceu nas periferias de Manaus atravessou o Atlântico e ecoou na segunda maior cidade de Portugal. A rapper amazonense Anna Suav e a DJ Rafa Militão desembarcaram no Porto para sua primeira apresentação em solo português, no último fim de semana — também marcado pelos últimos dias do verão. Mais do que beats e rimas, elas trouxeram consigo a força de uma cena musical que resiste, se reinventa e conquista espaços além das fronteiras brasileiras.
Anna Suav, MC, poeta e cantora, é uma das vozes mais potentes da cena hip hop amazônica desde 2017. Conectando Belém (PA) e Manaus (AM) como territórios de criação e ativismo, sua obra aborda temas como racismo, machismo, vivências e espiritualidade a partir de sua perspectiva enquanto mulher negra, amazônida e LGBTQIA+. Recentemente, foi destacada pela Academia de Gravação dos Estados Unidos (GRAMMY) como uma das rappers brasileiras mais promissoras da nova geração. É nesse fluxo artístico que Anna apresentou sua turnê de cinco shows pela Europa, passando por Paris, Marselha e Porto — prova de que o continente está cada vez mais conectado às vozes vindas da Amazônia.
Ao lado de Anna, veio Rafa Militão, sua parceira de turnê e responsável pelo DJ set. Publicitária de formação e hoje artista independente, Rafa vive exclusivamente da música há sete anos. Sua trajetória, como ela mesma define, é marcada por “garra, coragem e força”, impulsionada principalmente pelas pessoas que acreditaram em seu trabalho. “A música é minha ferramenta de vida em todas as formas. É onde consigo transformar minhas vivências e também me conectar com marcas e projetos. Ela atravessa tudo na minha vida”, afirma Rafa.
Para quem vive no Porto, como este que vos escreve, ou acompanha de perto a cena cultural brasileira em Portugal, ver talentos nortistas subirem ao palco do Maus Hábitos — uma das casas de show mais influentes da cidade — é também testemunhar um ato de resistência. Apesar da proximidade cultural entre Brasil e Portugal, o consumo musical segue dominado por expressões vindas do Sudeste brasileiro. Sonoridades fortes no Norte, como o tecnobrega, o boi-bumbá e o brega, ainda são pouco difundidas por aqui.
Nada disso, porém, faltou no set de Rafa, que transitou de “Eu vou tomar um tacacá”, clássico de Joelma, ao rap autoral nascido na periferia manauara. A passagem da dupla pelo Porto, como parte da turnê europeia, mostra que há espaço e, sobretudo, sede por uma Amazônia pop, plural e contemporânea. “A gente não faz música regional, a gente faz música pro mundo”, resume Rafa.
Após apresentações na França, onde encontrou uma comunidade engajada com a música brasileira, Rafa agora vive a experiência da troca com o público português. A expectativa, segundo ela, é de conexão e reafirmação. Valorizar a diversidade cultural entre países de língua portuguesa significa também expandir o alcance dessa imersão artística em um mercado europeu que consome em larga escala o português — especialmente em sua variante brasileira.
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Antes de sua estreia no Porto, conversei com Rafa Militão em uma entrevista exclusiva, que você confere a seguir, na íntegra.
Você está trazendo a voz da Amazônia para Portugal. O que significa para você representar o Norte fora do Brasil?
É um processo de retomada. Quando atravesso o Atlântico para cantar aqui, penso em quantos dos nossos foram levados à força desse lado para o outro. Representar a região é inevitável, faz parte de quem eu sou. Mesmo que eu não falasse disso, só minha presença já carrega esse peso. Para mim, é extraordinário. A gente faz música pro mundo, não apenas música regional, e estar aqui é prova disso.
O que diferencia a música feita na periferia de Manaus?
A periferia é periferia em qualquer lugar, mas a nossa tem contextos únicos. Quando você sai de Manaus para o Rio ou São Paulo, já chega vivendo uma diáspora. E quando vai além, para a Europa, são ainda mais camadas. O rap é cantar a realidade, mas nossas vivências são só nossas. Isso dá uma identidade única à música que produzimos.
Essa é sua primeira vez em Portugal. Quais são as expectativas para essa estreia?
Estamos muito ansiosos. Sabemos que o Porto é um polo cultural importante e queremos apresentar algo único. O som que fazemos em Manaus é diferente, e acreditamos que isso vai marcar. Chegamos antes para sentir a cidade, conhecer quem faz arte aqui e criar conexões. Essa troca é fundamental.
Em 2023 você lançou Herança, em parceria com Márcia Siqueira. O que esse projeto representa para você?
Herança é o projeto mais importante da minha carreira até agora. Foram dois anos de trabalho intenso. Ele reúne todas as referências que me formaram: rap, boi-bumbá, brega, maracatu. O curta que acompanha o single também tem um significado muito grande, com a presença da minha afilhada e da minha família. Foi uma honra compor com a Márcia, que admiro tanto. Esse trabalho é sobre firmar nossas raízes e celebrar o que conquistamos.
Como você enxerga a presença da música brasileira na Europa hoje?
Não me surpreende ver a música brasileira ganhando espaço. O Brasil é diverso, e a música reflete isso. O funk, por exemplo, se reinventa o tempo todo; o rap também dialoga com MPB e com artistas de carreira longa. Acho que nossa autenticidade e disposição para arriscar fazem com que o mundo olhe para nós. Se as pessoas realmente escutam nossa música, elas entendem melhor a diversidade do Brasil.
Sua trajetória mostra muitos desafios. Qual o papel de apoios institucionais para artistas independentes como você?
É fundamental. Minha carreira foi construída na garra e com apoio de pessoas próximas, mas sei que poderia estar em outro patamar se houvesse políticas públicas mais consistentes. A economia criativa é uma saída para muita gente, mas ainda falta enxergar a música como ferramenta de mudança social. Arte salva vidas, movimenta dinheiro e transforma comunidades.
Por fim, que mensagem você deixa para jovens artistas da periferia que sonham em seguir no rap?
Não deixem de sonhar. O rap, para mim, é continuação de sonho. É preciso coragem para acreditar e se movimentar. Quem não sonha, não anda. Meu corre é também para devolver essa possibilidade de sonhar para outras pessoas que vêm do mesmo contexto que eu.