Moradores são obrigados a construir nova infraestrutura e a viver longe do rio por conta do fenômeno das terras caídas. O problema se soma a outros já causados pela seca: além de precisar andar em barrancos e lidar com o desmoronamento das terras, os ribeirinhos enfrentam as altas temperaturas, os longos trajetos, a falta de comida e de assistência médica.
A professora Nilda Meireles foi a última moradora a deixar a sua casa na Comunidade Coadi, nas margens do rio Solimões, no Amazonas, depois de passar os últimos cinco anos morando à beira de um barranco. “Às vezes, eu ainda vou lá perto e choro”, diz. Em 2019, tudo o que havia ao redor dela foi sugado pela terra, num processo chamado de terras caídas. Escola, igreja, praça e casas desapareceram misturados à terra e lama. Ela não foi a única.
Comunidades que vivem às margens do rio Solimões estão desaparecendo por causa do fenômeno natural conhecido pelos ribeirinhos como “terras caídas”. Para os cientistas, o termo técnico é “erosão” ou “desbarrancamento”. Ele ocorre durante a seca, quando o solo, que antes estava encharcado de água, vai ficando mais quente, seco, cheio de porosidade, formando blocos que se tornam tão craquelados e sem estrutura a ponto de desabar. Mas esse fenômeno não ocorre somente nesse período. Nas cheias, as águas batem forte nas margens, movimentadas pelos balanços dos barcos. Com o impacto, a terra cai. As fortes chuvas também podem derrubar os solos vulneráveis.
As consequências do fenômeno são agravadas pelos eventos climáticos extremos que estão ocorrendo com mais frequência na Amazônia, um resultado do aquecimento global. “As terras caídas ocorrem com maior frequência na vazante. Embora seu motor seja a erosão fluvial, que solapa.
Fenômeno geológico que ocorre quando o solo ou rochas são deslocadas a base dos barrancos, a descida rápida das águas expõe taludes
Terrenos inclinados que atuam como base de sustentação para o solo das margens dos rios que podem ultrapassar 30 metros de altura e inclinação abrupta, formando terrenos instáveis e sujeitos a deslizamentos de grande porte”, explica Marco Antônio Oliveira, Pesquisador em geociências do Serviço Geológico do Brasil (SGB).
As terras caídas ocorrem com maior frequência na vazante. Embora seu motor seja a erosão fluvial, que solapa a base dos barrancos, a descida rápida das águas expõe taludes das margens dos rios que podem ultrapassar 30 metros de altura e inclinação abrupta, formando terrenos instáveis e sujeitos a deslizamentos de grande porte.Marco Antônio Oliveira, pesquisador do SGB
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Além disso, o processo pode ocorrer lentamente, com blocos de terras caindo aos poucos, ou pode ser catastrófico, despencando de forma abrupta, num formato rotacional, surgindo uma cratera de grandes extensões. “A gente está falando de um processo de migração fluvial que erode de um lado e deposita [sedimento] do outro, ele fica nessa dança perpétua, é um processo natural”, diz Ayan Fleischmann, pesquisador em geociência do Instituto Mamirauá.
As atualizações sobre as terras caídas estão sendo vistas com frequência durante a seca deste ano, no Amazonas. Em setembro, 30 casas na orla do município de São Paulo de Olivença foram atingidas. No início de outubro, uma criança desapareceu após a queda da comunidade Terra Preta, em Manacapuru.
Neste ano, além de andar em barrancos e ter as terras caindo, os ribeirinhos enfrentam as altas temperaturas, os longos trajetos, a falta de comida e de assistência médica. A reportagem visitou seis localidades que enfrentam o problema na região: São Luís do Macari, Coadi, Aldeia Assunção, Vila Soares, Canariá e Caborini. Elas ficam entre as cidades de Tefé, Alvarães e Uarini, interior do estado.
Coadi é um dos casos mais emblemáticos, pois o local tinha a estrutura de um bairro e tudo foi conquistado e construído pelas famílias ribeirinhas do lugar. Não houve mortes, mas, depois da destruição, eles precisaram migrar para dentro da floresta e mais longe da margem.
A professora Nilda foi a mais resistente. Na década de 80, a família dela ocupou o lugar e, até hoje, ela e outro irmão vivem ali. “Na minha infância aqui eu brincava de pular na água, de jogar bola, de fazer ciranda, gostava de ficar no rio”.
Quando tudo caiu era noite. Foi uma correria grande, mas a casa dela continuou de pé. A moradia feita de madeira, cheia de árvores e flores aos lados, continua lá, mas em cima de um barranco, prestes a cair. Nilda diz que só saiu mesmo por medo. Apesar da residência ter sido a única que continua firmada no chão, aos poucos o barranco foi caindo e formando rachaduras. Quando chovia muito, ela saía de casa junto dos dois filhos e ia dormir na escola que foi construída depois. “Eu gostava de lá, era muito bom, a gente não queria sair”, diz.
Quem saiu com pressa e não esperou nenhum dia foi Meuriane Ribeiro. Nascida e criada na comunidade, ela conta que eles não suspeitavam de nada na época. Agora, Meuriane já construiu uma casa de alvenaria e está ajudando na construção da igreja. “Devido às terras caídas, a gente teve que se deslocar para cá e foi tudo muito difícil porque a escola e a igreja estavam lá na frente. Tudo caiu muito rápido a gente veio logo aqui para dentro”, conta.
Devido às terras caídas, a gente teve que se deslocar para cá e foi tudo muito difícil porque a escola e a igreja estavam lá na frente. Tudo caiu muito rápido a gente veio logo aqui para dentro.Meuriane Ribeiro, moradora da comunidade Coadi
Meuriane está preocupada, porque o solo continua rachando e ela acredita que será necessário mudar mais uma vez. A casa dela custou R$ 6 mil. Para sair e entrar no local, ela precisa andar 20 minutos até a outra comunidade próxima, onde tem a margem limpa para transitar. “Eu acho que deveriam vir para ver a situação [as autoridades], está perigoso aqui. Quando chove muito, é difícil para as crianças andarem, chegarem na escola. Não tem mais o rio pra pegar água, está complicado”, diz.
Pesquisas de impactos sobre fenômeno das Terras Caídas
A geógrafa Paula Silva nasceu na comunidade São Luis do Macari, que em 2018 foi atingida pelo fenômeno. Desde 2021, ela desenvolve pesquisas para entender os impactos na vida dos seus familiares, colegas e vizinhos e chegou a escrever um artigo. Agora, está ampliando seus resultados, incluindo mais comunidades, com apoio do Grupo de Pesquisa Geociências e Dinâmicas Ambientais na Amazônia, do Instituto Mamirauá, organização social que tem parceria direta com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).
A reportagem acompanhou seu trabalho durante três dias. É olhando para o chão que ela entra nas comunidades, faz registros fotográficos, toca o solo, observa cada mudança e realiza entrevistas. “Eu vejo como estão as fissuras, a estrutura, a inclinação do barranco, se tem banzeiro
Movimento que causa ondulação nas aguás dos rios, se a água está entrando no solo. Tudo tem a ver com o rio ou com a falta dele”, diz.
No caso da comunidade dela, Paula conta que o desabamento já era esperado, porque o processo foi lento, mas não era possível fazer previsões de dia ou mês para a queda. “Às vezes, o solo pode estar totalmente intacto em cima, mas embaixo ele já começou a ruir. Não tem como dizer quando cai”, diz.
A população precisou se mudar para mais longe da margem. Da entrada até chegar às casas, o percurso é de 30 a 40 minutos e só é possível a pé. Com o calor, o trajeto fica mais difícil.
O agente comunitário de saúde João Leandro da Silva chegou na comunidade aos 23 anos. Na época, era professor e dava aulas para Paula. Depois, fez o curso para ser agente sanitário. Todos os dias, ele passa nas casas verificando a pressão dos moradores, receitando remédios e solicitando reforço do município de Tefé, quando necessário.
João já teve de reconstruir a sua casa três vezes. Toda vez que ele percebe que o solo está rachando, ele vai entrando mais para a floresta, junto dos outros comunitários. “A gente vai desmanchando antes que caia”, diz. Essa é uma das estratégias. No lugar de fazer casas de alvenaria, os moradores agora escolhem seguir com as construções de madeira, que são possíveis de serem desfeitas, carregadas para outros lugares e reconstruídas.
Sinergia dos desastres
Quanto mais longe da margem, mais difícil para eles terem acesso ao rio, que é muito importante no cotidiano. É no Solimões que fazem pescas, lavam roupas, tomam banho. É por ele que navegam para chegar ao hospital, aos mercados e às escolas. Com a seca, tudo piora.
A professora Silvonia Silva diz que a maior dificuldade para ela é o acesso à água. Até o início de agosto, a comunidade tinha a Solução Alternativa de Tratamento de Água com Zeólita (SALTA-z), uma estrutura desenvolvida pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa), que traz caixas d’água, tubos e cabos que retiram a água do rio e a purificam.
Naquele mês, o calor ficou mais forte e o solo onde estava o SALTA-z começou a rachar. Com medo de tudo desmoronar em cima da casa ao lado, os moradores decidiram desativar a estrutura, retirando a construção de madeira que estava erguida. Eles dizem que a Defesa Civil de Tefé foi avisada e que estão, até hoje, esperando uma nova ser construída, em local mais seguro.
“A água que temos é da chuva e do rio, que não são tratadas. Estamos fazendo o possível, jogando cloro nela, mas é muito difícil. Para comprar galões na cidade, leva mais de 4h só para ir, quando chega precisa andar quase 1h também, fica tudo muito inviável”, conta.
De acordo com o pesquisador Ayan Fleichman, os eventos extremos estão agravando as consequências do processo natural que já traz sérios problemas. “A combinação desses fatores, das terras caídas junto com seca extrema, com cheia extrema e fumaça de queimada, é uma sinergia absolutamente terrível para as populações”, explica.
A combinação desses fatores, das terras caídas junto com seca extrema, com cheia extrema e fumaça de queimada, é uma sinergia absolutamente terrível para as populações.Ayan Fleichman, pesquisador do Instituro Mamirauá
Ele cita como exemplo a falta de água na comunidade São Luís do Macari, que mesmo com o problema das terras caídas, ainda poderia ter água em dias comuns. “Ela poderia ir ao rio, poderia captar água da chuva. Mas a gente tem uma seca, então está chovendo pouco. Ela não consegue captar água da chuva necessária. O rio está distante, não consegue buscar água. E a terra caída tirou o poço. O resultado é pior por causa da sinergia dos desastres”, afirma.
O futuro das margens
A meteorologista Lady Custódio avalia que neste ano os dados de calor estão acima do normal e de chuva abaixo da média. Ela monitora os dados a partir de Tefé. A cidade é a mais estruturada perto dos municípios de Uarini e Alvarães, em termos de comércio, saúde e educação. Somente lá existe uma estação de monitoramento com dados consolidados.
Em setembro, a temperatura máxima diária chegou a 37.6ºC em Tefé. O normal para este mês é que alcance os 34ºC. No mês anterior, em agosto, a chuva acumulada foi de 48.4 milímetros na região, sendo que a média era de 92.9 milímetros.
“O solo vai estar mais seco, com rasuras, e isso vai deixar ele mais propício a ceder. Então, essas temperaturas estão mais elevadas. Ano passado a gente chegou a ter temperaturas muito elevadas, acima da média, com 40ºC, 41ºC, quando tivemos mortes de botos e tucuxis. O que estamos vendo agora é o aquecimento global. A temperatura do ar está mais elevada e começam a ter eventos extremos”, explica.
Lady verifica os dados todos os dias e acompanha a subida e descida do rio no lago Tefé, que banha as margens da cidade. “É desesperador, mas ainda tem como mudar: trocar as nossas fontes de energia, conservar a nossa floresta, ter uma agricultura mais sustentável. Pelos estudos, se a gente começar a reverter, vai demorar pelo menos uns 10 anos para conseguir ter os patamares de temperaturas do ar e um clima mais agradável, mas tem que começar agora”, diz.
Para Paula Silva, além de combater o aumento dos eventos extremos, os agentes públicos precisam criar ações para reduzir os danos aos ribeirinhos. Ela pede que sejam feitas políticas públicas voltadas para a resolução dos problemas ocasionados pelo fenômeno. “É algo que não vem de hoje e a situação só se agrava. Talvez as comunidades que hoje visitamos daqui um tempo não existam mais e eles não têm para onde se mudar. Qual é a ação do poder público para deslocar essa população?”, questiona a pesquisadora.
Fleichman explica que o Solimões vai continuar com a sua dinâmica, com mudanças no curso do rio, com secas e cheias anuais. Por isso, defende que será necessário uma organização estratégica para pensar em adaptação ao problema. Ele diz que fazer a mudança das comunidades para solos mais firmes não é a única opção, porque elas podem ficar mais isoladas.
“É muito melhor criar soluções locais para que as comunidades sejam mais autossuficientes. Ter mais polo de saúde, mais polo de educação. Investir na produção agrícola, absorver isso na merenda escolar, adaptar o calendário das aulas. Você tem muitas ações e eles [comunitários] já sabem, eles já dão o caminho. Não tem que reinventar a roda, não tem que querer uma coisa mirabolante. Tem solução concreta para fazer”, afirma.
Reportagem de Jullie Pereira, do InfoAmazonia