No último 23 de setembro, os cientistas que atuam no Instituto Mamirauá, na região do município de Tefé, iniciaram um sábado normal, coletando material para pesquisas sobre botos no Amazonas. No entanto, depois do trabalho de campo, durante a reunião de avaliação, eles começaram a receber, via WhatsApp, muitas imagens de botos mortos.
Aquilo imediatamente assustou a todos. “Paramos tudo o que estávamos fazendo e fomos procurar os botos. Desde lá estamos recolhendo carcaças”, conta a oceanóloga Miriam Marmontel, pesquisadora do Instituto Mamirauá.
Miriam é uma gaúcha que há 30 anos se mudou para o Amazonas com o objetivo de trabalhar com os botos. Com o passar do tempo, os mamíferos aquáticos se tornaram sua companhia.
“É sempre um prazer muito grande estar com eles e ir a campo, mas nesse dia tudo o que vimos foram carcaças, dezenas e dezenas de botos com a boca aberta. Eu queria nunca ter passado por isso”, conta.
Naquele dia, a equipe mobilizada para encontrar as respostas para entender o que pode ter ocasionado as mortes de mais de 141 botos no Lago Tefé se limitava ao grupo do Instituto Mamirauá.
Hoje, são mais de 100 pessoas, de diversos órgãos ambientais do estado e de organizações não governamentais. No momento, os pesquisadores têm mais perguntas do que respostas.
Os cientistas tentam descobrir: O que ocasionou as mortes dos botos no Amazonas? Há contaminação da água? O calor foi um fator decisivo? Por que os botos-cor-de-rosa foram os mais atingidos? Por que os animais não deixaram o lago? Houve alteração neurológica? As algas que aparecem no lago têm alguma relação? Qual o motivo do aquecimento do rio?
No momento eles trabalham com três hipóteses: a primeira é sobre a temperatura da água, que chegou nas últimas semanas a 39ºC. Logo, o calor pode ter provocado as mortes. A segunda é sobre a formação de algas encontradas durante as buscas que nunca antes tinham sido vistas no lago.
Os cientistas analisam se as algas estariam liberando toxinas que poderiam também causar a morte dos botos. A terceira hipótese é a combinação desses dois fatores, ou seja, a alta temperatura da água e possível contaminação dela.
A necessidade de encontrar respostas pesa a cada dia. Isso porque, sem as explicações, fica muito difícil determinar as medidas de prevenção e controle para sobrevivência dos animais.
Além da dificuldade de avaliar quando e de que forma isso pode ocorrer novamente, no Lago Tefé ou em outros rios da Amazônia.
Os botos na Amazônia
A figura do boto-cor-de-rosa é uma das representações mais emblemáticas e importantes para a identidade dos povos da Amazônia.
Desde a infância, a população local escuta a lenda do homem que dança em festas, seduz mulheres e depois vira boto. Seu carisma, sua cor e alegria são características que tornam esse animal um dos símbolos mais queridos da região.
O antropólogo Agenor Vasconcelos explica que a presença do boto na cultura amazônica vai muito além do folclore.
“A partir da visão da cultura amazônica, principalmente dos povos indígenas, os animais são vistos como se fossem também pessoas, que têm suas famílias, seus costumes e também sofrem. Então o boto é muito importante, não só nesse nível cultural, mas no nível cosmopolítico de toda a Amazônia”, conta.
São os botos-cor-de-rosa os que mais preocupam os pesquisadores. Mais robustos e inteligentes, costumam ser mais imunes às doenças. “O botos-cor-de-rosa é um animal muito mais robusto e resistente. Mesmo na seca, ele consegue transitar em locais mais baixos, no entanto 80% das mortes que a gente tem registrado são dos botos-cor-de-rosa. São muitas anormalidades”, conta Miriam.
O boto-cor-de-rosa é um animal muito mais robusto e resistente. Mesmo na seca, ele consegue transitar em locais mais baixos, no entanto 80% das mortes que a gente tem registrado são dos botos-cor-de-rosa. São muito anormalidadesMiriam Marmontel, pesquisadora do Instituto Mamirauá
Com a seca, o transporte das amostras coletadas para laboratórios fora do município de Tefé, ficou muito difícil. As embarcações não possuem rios para navegar e os voos comerciais têm horários limitados. Miriam estima que o diagnóstico das amostras devem estar prontos até o fim do ano.
Não é de agora que os cientistas avaliam a possibilidade de haver uma mortalidade de botos. Miriam conta que há anos tem feito pesquisas para tentar prever e evitar fatores que causassem as mortes.
Essa possibilidade era estudada porque é uma situação vista em outros lugares, mas seus estudos sempre incluíram a possibilidade de vírus ou contaminação, nunca a relação com o clima. Ela avalia que as mortes devem ocorrer novamente.
“A gente já vem se preparando há alguns anos, estudando a saúde dos botos, porque a gente sabia que isso ia acontecer, porque aconteceu em outros lugares do mundo. Começou anos atrás com o vírus de botos lá na Europa. A gente já teve mortes na Baía de Sepetiba alguns anos atrás, ou seja catástrofes. Era questão de tempo que ocorresse algo na Amazônia, ou um vírus, um derramamento de óleo. Era o que a gente tentava mapear”, explica Miriam.
Seca no Amazonas
O Amazonas passa por uma seca severa que apresenta dados históricos de cotas mínimas dos rios. De acordo com a Defesa Civil do estado, o Rio Madeira, na região do município de Nova Olinda do Norte, está com 7,61 metros, quase atingindo a menor cota já registrada, de 7,30 metros, que ocorreu em 1995.
O Rio Negro, que banha a cidade capital Manaus, está com 14,79 m e sua cota menor cota foi registrada em 2010, com 13,63 metros.
No Rio Solimões, na região do Médio Solimões, onde fica situado o município de Tefé, o último registro da cota é de 10,38 m e a cota mínima histórica é de 8,02 m, registrada em 2010.
De acordo com Marília Nascimento, responsável pela previsão climática do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), a seca está pior este ano devido a dois eventos extremos climáticos: o El Niño e o aquecimento das águas do Oceano Atlântico Norte.
Desde março deste ano, o Atlântico Norte está apresentando níveis elevados de calor. Esse aquecimento está criando uma espécie de barreira que impede a ocorrência das chuvas na Amazônia. Aliado a isso, o El Niño
fenômeno natural que ocorre quando há o aquecimento do Oceano Pacífico Equatorial, causando alterações climáticas no mundo deste ano está causando impactos climáticos, mudando o curso dos ventos, da temperatura, da umidade e das chuvas.
A figura a seguir, publicada pelo Inmet na segunda-feira (9), mostra o aquecimento do Oceano Atlântico Norte nos meses de setembro dos anos de 2005, 2010, 2015 e 2023.
É possível notar que as altas temperaturas, ilustradas pela cor laranja e vermelha, vão aumentando nos anos mais recentes, alcançando cada vez mais o Brasil, chegando pela região Norte.
“Quando as águas do Atlântico Norte estão mais aquecidas o que acontece é que a gente tem uma célula, chamada célula de Hadley, subsidente bem em cima da Amazônia, mudando a configuração da circulação normal da atmosfera, impedindo que haja a formação das nuvens de chuva. Então, isso é o principal fator que está causando essa seca toda, em conjunto também com El Niño”, explicou.
Marília afirma que, até o fim de dezembro, a previsão é de que o El Niño prejudique a região Norte e Nordeste do país. “O El Niño vai ser mais predominante agora e a seca maior será na parte norte e leste da região Norte e no semiárido do Nordeste. É normal que ocorra seca nesse período na região Norte, o que é diferente este ano é que as chuvas estão muito abaixo do que é esperado”, explicou.
A especialista avalia que o aquecimento global está ocasionando diversos extremos climáticos e que a tendência é que eles ocorram com mais frequência.
“O planeta de uma forma geral está mais aquecido, nesses últimos meses foram recordes de temperatura da superfície do mar como um todo. Isso provoca algumas mudanças no planeta. De acordo com os últimos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), extremos como esses de chuva demais, seca demais, eles tendem a ser mais frequentes e mais intensos. O próprio El Niño, por exemplo, tem de acontecer entre 1 a 7 anos, mas a tendência é que ocorra no período mais curto, de dois a três anos”, disse.
O engenheiro ambiental Ayan Fleischmann, responsável pelo eixo de monitoramento ambiental no Instituto Mamirauá, afirma que essa mudança de temperatura pode afetar de maneira irreversível o habitat dos botos no Amazonas.
“Essas combinações de calor levam a uma seca extrema na Amazônia, existe uma boa chance de ocorrer novamente. E aí vem a pergunta: e se acontecer de novo essa temperatura de 39 graus, vamos encontrar outra mortandade? É muito preocupante uma temperatura alta dessas. Com certeza desequilibra o sistema, talvez de uma forma irreversível”, diz.
Fleischmann explica que o calor e a seca podem ter sido um dos fatores para a mortandade de botos no Amazonas.
“A temperatura ao longo do dia varia de 29º de manhã para 37º à tarde, estamos fazendo uma amplitude de 8° c. Isso é um verdadeiro choque térmico. O lago está muito raso, então ele perde calor fácil e ganha calor fácil. Então essa amplitude térmica esteve variando de 29º a 37º, e num dado dia ela chegou a 39º. Talvez tenha sido realmente o limite de tolerância de alguns animais, como os botos e tucuxis”, explica.
Impactos da seca
De acordo com a Defesa Civil, são 297 mil pessoas atingidas pela seca, em 60 dos 62 municípios do estado. Com rios sem água, as famílias dos municípios na região metropolitana de Manaus e dos municípios do interior do estado estão isoladas, com dificuldade para atendimento médico, abastecimento de comida e acesso à água potável. São 2,200 mil crianças que estão com as aulas interrompidas nas escolas estaduais.
No município de Beruri, uma comunidade toda foi sugada, depois que o rio secou e deixou um espaço oco embaixo da terra.
O Governo do Amazonas decretou estado de emergência e na última semana recebeu o vice-presidente Geraldo Alckmin, os ministérios do Meio Ambiente, do Desenvolvimento, dos Povos Indígenas, dos Portos e Aeroportos e de Minas e Energia.
“A gente tem uma crise sem precedentes aqui. Estamos nos articulando em grupos de WhatsApp com ribeirinhos de toda região discutindo o que está ocorrendo, porque estão sem água, sem conseguir sair da comunidade, sem acesso à educação, saúde. Existem muitas ações que podem ser feitas pelos governos locais e eles precisam ser responsabilizados. O problema de falar em crise climática é que parece que os responsáveis estão muito longe, mas não estão”, defende o engenheiro ambiental Ayan Fleischmann.
Com a seca, os focos de queimadas também aumentaram no Amazonas, estado que teve recorde de queimadas em setembro.
De acordo com o monitoramento da Defesa Civil do estado, os focos de calor foram crescendo a partir de julho. Naquele mês, foram 1.947 registros, em agosto foram 5.474 e em setembro foram 6.991.
O fogo causa uma forte fumaça que chega na capital. Há mais de um mês, os moradores convivem com um ar comprometido e relatam sintomas de dor de cabeça, enjoo, fadiga e falta de ar.