Qual Ć© a situação atual do Brasil em relação ao reconhecimento de direitos das pessoas LGBT+? Qualquer resposta serĆ” incompleta se nĆ£o levar em consideração a realidade de outros paĆses ā exercĆcio que precisa ponderar as diferenƧas culturais, polĆticas e sociais de cada um, mas isso nĆ£o invalida as comparaƧƵes, antes reforƧa a sua importĆ¢ncia.
Para alguĆ©m que seja gay, lĆ©sbica ou transgĆŖnero, certamente farĆ” grande diferenƧa viver ou mesmo passar fĆ©rias em Malta ou na ArĆ”bia Saudita ā respectivamente, o primeiro e o Ćŗltimo paĆs no ranking de 2023 elaborado pelo site Spartacus sobre as naƧƵes mais acolhedoras do mundo para o pĆŗblico LGBT+ (o Brasil ocupa a 35ĀŖ posição em uma lista de 199 paĆses). Entre os critĆ©rios levados em consideração no estudo, estĆ£o a existĆŖncia de leis antidiscriminatórias, os direitos previstos especificamente para transgĆŖneros e a possibilidade de pena de morte para pessoas LGBT+.
A pesquisa da pĆ”gina Spartacus e outros estudos apontam uma relação direta entre o ordenamento jurĆdico do paĆs e as condiƧƵes de vida, seguranƧa e respeito para a população LGBT+. Entender a realidade jurĆdica de alguns desses paĆses ā por semelhanƧa ou por oposição ā contribui, assim, para aprofundar o conhecimento sobre a própria realidade brasileira a respeito do tema.
Após as reportagens especiais sobre a situação de transgĆŖneros nos presĆdios e sobre os efeitos de precedentes históricos do STJ nos direitos dessas pessoas, o projeto TRANSFormando Direitos, da Secretaria de Comunicação Social do Superior Tribunal de JustiƧa (STJ), mostra como alguns paĆses do mundo tĆŖm abordado o tema LGBT+ em seu ordenamento jurĆdico.
Este é um dos assuntos que estarão em debate no seminÔrio Igualdade e Justiça: a Construção da Cidadania Plural, a ser realizado pelo STJ na próxima quinta-feira (22).
Argentina tem lei de identidade de gênero e previsão de cotas nos setores público e privado
Posicionada em 13Āŗ lugar no ranking da Spartacus, a Argentina foi o primeiro paĆs da AmĆ©rica Latina a legalizar o casamento homossexual, em 2010. A autorização foi possĆvel a partir de uma mudanƧa no Código Civil aprovada pelo Congresso.
Em 2012, a nação vizinha aprovou uma lei que garante o chamado direito à identidade de gênero. A inovação legislativa beneficiou principalmente transgêneros e transexuais, garantindo mais facilidades na obtenção e na troca de documentos civis. De acordo com essa lei, toda pessoa tem o direito de alterar o nome e o sexo no registro civil quando não coincidirem com a sua identidade de gênero autopercebida. A modificação pode ser feita sem necessidade de qualquer trâmite judicial ou administrativo.
Ainda segundo a lei argentina, mesmo que nĆ£o haja alteração imediata do registro civil, deve ser respeitada a identidade de gĆŖnero adotada pelas pessoas, em especial menores de idade. O texto legal prevĆŖ que nenhuma norma poderĆ” limitar, restringir, excluir ou suprimir o exercĆcio do direito Ć identidade de gĆŖnero.
Ao interpretar a lei de identidade de gĆŖnero, em 2019, a JustiƧa de Buenos Aires determinou que o órgĆ£o de registros civis do paĆs alterasse a identidade de uma pessoa travesti de “feminino” para “feminilidade travesti”.
Na decisĆ£o, a juĆza considerou que a Lei 26.743, ao garantir o respeito Ć vivĆŖncia de acordo com o modo como cada pessoa se enxerga em seu gĆŖnero, nĆ£o limitou o registro oficial das identidades Ć forma binĆ”ria masculino ou feminino.
Mais recentemente, em 2021, o Congresso da Argentina aprovou a lei que garante cota mĆnima de 1% de cargos no serviƧo pĆŗblico para travestis, transexuais e transgĆŖneros, alĆ©m de prever incentivos para que o setor privado ofereƧa o mesmo quantitativo de vagas. Em razĆ£o da situação de vulnerabilidade normalmente vivida por esses grupos, a lei estabelece que os antecedentes penais que sejam irrelevantes para o acesso ao emprego nĆ£o representem obstĆ”culo.
As garantias Ć população LGBT+ argentina incluem a possibilidade de obter o documento nacional de identificação com a marcação de gĆŖnero X ā uma indicação de que a pessoa nĆ£o se identifica como homem ou como mulher ā e a previsĆ£o legal de adoção por casais homoafetivos, a partir de alteraƧƵes introduzidas no Código Civil do paĆs pela Lei 26.618/2010.
DecisƵes da Corte Constitucional da ColĆ“mbia foram fundamentais para avanƧos no paĆs
Na ColĆ“mbia, a ausĆŖncia de legislação especĆfica sobre os direitos da comunidade LGBT+ levou o Poder JudiciĆ”rio, em especial sua Corte Constitucional, a ser o principal palco dos avanƧos recentes em relação ao tema. A partir dos precedentes judiciais, gradativamente, o Estado tem modificado alguns normativos na mesma direção.
Em 2015, consolidando o entendimento de julgados anteriores, a Suprema Corte colombiana entendeu que a necessidade de intervenção judicial para que uma pessoa transgênero obtivesse autorização para alterar seu registro civil violava diversos direitos fundamentais e representava uma discriminação injustificÔvel em relação às pessoas cisgênero.
Com base no precedente da Corte Constitucional, no mesmo ano, o Poder Executivo colombiano editou decreto para permitir que pessoas transgênero solicitem a modificação do registro civil diretamente nos cartórios. O procedimento não estÔ condicionado à realização de cirurgia ou a qualquer tratamento hormonal prévio, bastando uma petição e a apresentação de alguns documentos.
Antes do precedente de 2015, a instância judicial mÔxima da ColÓmbia jÔ havia se manifestado em vÔrios julgamentos sobre o tema. Em 2011, por exemplo, em virtude de episódios de discriminação contra uma presa transexual, a corte estabeleceu uma série de medidas para conscientizar agentes de segurança sobre a forma de tratamento de presos e presas LGBT+.
O caso analisado pelo tribunal envolvia uma presa travesti que, por utilizar cabelos longos e maquiagem, sofria discriminação e violência por parte de agentes penitenciÔrios. Ao responder à ação, a direção do estabelecimento penitenciÔrio afirmou que, conforme previsto em norma interna de higiene pessoal, era proibido manter cabelos longos.
Também com base no direito ao livre desenvolvimento da personalidade e da orientação sexual, a Corte Constitucional considerou indevida a atitude de um colégio colombiano que impedia alunas transgênero de usar uniformes femininos. Para o tribunal, a instituição de ensino não poderia, amparada em seu manual de convivência, fomentar prÔticas de discriminação e intolerância contra estudantes que adotem uma identidade diferente de seu sexo biológico.
Em 2012, a Corte Constitucional ordenou que o plano de saĆŗde de uma mulher transexual arcasse com sua cirurgia de redesignação sexual. Segundo a decisĆ£o, o atendimento Ć saĆŗde nĆ£o se limita Ć situação de enfermidade, mas compreende todos os elementos mentais, psĆquicos e sociais que influem na qualidade de vida.
Após sucessivos pronunciamentos judiciais de sua alta corte, o Congresso da República estÔ discutindo em 2023 um projeto que busca reunir mecanismos para a garantia de direitos às pessoas trans na ColÓmbia.
EUA: realidades drasticamente distintas de estado para estado
Nos Estados Unidos, cujos 50 estados têm um grau de autonomia legislativa e judicial muito mais acentuado do que no Brasil, a situação dos direitos LGBT+ é peculiar. HÔ uma série de leis distintas de estado para estado no que diz respeito a esses direitos. Nos primeiros meses de 2023, 66 leis caracterizadas como prejudiciais pela organização Trans Legislation Tracker foram aprovadas em 49 dos 50 estados.
Uma delas Ć© a Lei SB 613/2023, aprovada pela Assembleia Legislativa e pelo Senado do Oklahoma (nos estados norte-americanos, existe a figura de um senado, assim como a de uma suprema corte estadual). Essa lei proĆbe procedimentos de transição de gĆŖnero em menores de 18 anos, incluindo cirurgias e atĆ© mesmo o uso de medicamentos de controle hormonal.
Segundo a norma, profissionais de saúde que de alguma forma ajudem em um desses procedimentos podem ter a licença cassada, sofrer penalidades administrativas e responder criminalmente pela conduta.
Oklahoma foi considerado pela pÔgina Spartacus o mais atrasado dos 50 estados norte-americanos em termos de direitos LGBT+ (em razão da autonomia legislativa, o ranking norte-americano foi elaborado estado por estado).
Na Flórida, o Poder Legislativo estadual aprovou recentemente algo mais drĆ”stico: a possibilidade de custódia estatal de qualquer menor de 18 anos que tenha passado por cirurgia de redesignação sexual. Segundo a Lei CS/SB 254, a medida seria necessĆ”ria para garantir a seguranƧa da crianƧa, em uma espĆ©cie de “jurisdição emergencial” do Estado.
A lei aprovada na Flórida com maior repercussĆ£o no noticiĆ”rio mundial talvez tenha sido a Lei 1.557/2022, apelidada de “nĆ£o fale gay ou trans”. Ela proibiu qualquer discussĆ£o sobre temas LGBT+ em salas de aula, atĆ© o terceiro ano do ensino fundamental. Em 2023, o Legislativo aprovou uma extensĆ£o do banimento desses assuntos em todas as sĆ©ries, incluindo o ensino mĆ©dio.
Outros estados oferecem proteção e promoção de direitos
Apesar dos exemplos dos estados mais conservadores, a realidade é bem distinta em outros, inclusive com ações legislativas para garantir direitos à população LGBT+. Na Califórnia, estado número um no ranking do site Spartacus, o Legislativo estadual aprovou a Lei 2.218/2020, que instituiu um fundo para o bem-estar de transgêneros.
A mudanƧa de dados em qualquer documento Ć© um direito na Califórnia, sem a obrigação da cirurgia de redesignação sexual. Algumas cidades tomaram medidas adicionais para expandir a defesa das pessoas trans. San Francisco, por exemplo, definiu agosto como “MĆŖs da História Trans”. Em 2021, a Califórnia tambĆ©m aprovou a Lei 1.094, destinada a coletar dados sobre homicĆdios e outros casos de violĆŖncia contra transgĆŖneros.
Os exemplos de proteção e promoção de direitos também são vistos em outros estados, como no Colorado. Em abril deste ano, o Legislativo local aprovou três leis para garantir acesso à cirurgia de redesignação sexual, ao uso de bloqueadores hormonais e a outros serviços de saúde para a população trans.
Em Malta, igualdade de direitos em favor de pessoas LGBT+ tem status constitucional
Confirmando a avaliação do site Spartacus, a organização nĆ£o governamental ILGA-Europe ā instituição focada na defesa dos direitos das pessoas LGBT+ na Europa ā classificou, em 2022, a ilha de Malta como o paĆs europeu com o maior nĆvel de respeito e de promoção da equidade em favor desse grupo social.
Com base em 78 itens de avaliação ā muitos deles voltados para a anĆ”lise de ancoragem legal e das polĆticas pĆŗblicas ā, Malta alcanƧou o Ćndice de 92% de proteção legal e de atenção aos direitos da comunidade LGBT+. Para comparação, a Dinamarca atingiu 74% no ranking; a FranƧa, 64%; e a ItĆ”lia, 25%. O Ćŗltimo colocado da lista Ć© o AzerbaijĆ£o, com apenas 2% ā uma indicação, segundo a ILGA-Europe, de graves violaƧƵes de direitos humanos e de discriminação no paĆs.
Os motivos que tornam Malta uma referĆŖncia mundial na garantia dos direitos LGBT+ comeƧam na Constituição: o paĆs Ć© um dos Ćŗnicos do planeta que preveem, na sua lei principal, a igualdade de direitos independentemente da orientação sexual ou do gĆŖnero. Esses direitos foram especialmente garantidos após uma emenda constitucional aprovada em 2014.
Na esteira daquela mudanƧa constitucional, o Parlamento de Malta aprovou, em 2016, a Lei de Afirmação da Orientação Sexual, Identidade de GĆŖnero e ExpressĆ£o de GĆŖnero. Sob o princĆpio de que nĆ£o se trata de doenƧa ou desordem mental, o normativo proibiu a prĆ”tica das chamadas “terapias de conversĆ£o” ā tĆ©cnicas que prometem alterar a orientação sexual do indivĆduo ā de maneira involuntĆ”ria ou sobre pessoas consideradas vulnerĆ”veis, sob pena de prisĆ£o e multa mĆnima de mil euros.
No ano seguinte, a nação insular passou a permitir a emissĆ£o de documentos oficiais ā incluindo passaporte ā com a marca neutra “X” na informação de gĆŖnero. A possibilidade Ć© extensĆvel a estrangeiros que obtenham algum documento de residĆŖncia no paĆs.
O arcabouƧo jurĆdico de proteção Ć s pessoas LGBT+ em Malta inclui, ainda, a previsĆ£o de crime no caso de discriminação por orientação sexual ou identidade de gĆŖnero, com pena de prisĆ£o de seis a 18 meses (artigo 82-A do Código Criminal de Malta), alĆ©m do reconhecimento legal Ć uniĆ£o civil de pessoas do mesmo sexo.
Suécia tem longo histórico de proteção dos direitos LGBT+
Ainda no continente europeu, a SuĆ©cia tambĆ©m costuma ser positivamente citada entre os paĆses que respeitam os direitos LGBT+. A nação escandinava ocupa a 17ĀŖ posição no ranking da Spartacus e a 13ĀŖ colocação na lista da Equaldex, por exemplo.
Uma das explicaƧƵes para as posiƧƵes alcanƧadas pelo paĆs nesse tema Ć© o seu longo histórico de proteção Ć s garantias da comunidade LGBT+, especialmente pela via legal. Desde 1944, a SuĆ©cia reconhece legalmente as relaƧƵes homoafetivas, e, em 1972, se tornou o primeiro paĆs do mundo a permitir a mudanƧa de gĆŖnero, embora a exigĆŖncia de que a alteração fosse acompanhada de procedimentos cirĆŗrgico e hormonal só tenha sido retirada da legislação em 2013.
Outros marcos importantes no paĆs sĆ£o a mudanƧa da Constituição para proibir discursos de ódio baseados na orientação sexual, em 2003, e a legalização do casamento homoafetivo, em 2009.
JapĆ£o tem lei sobre “desordem de identidade de gĆŖnero” e decisƵes opostas em tribunais
No mundo oriental, o JapĆ£o costuma ocupar posiƧƵes intermediĆ”rias nos rankings sobre direitos LGBT+. No site Spartacus, por exemplo, o paĆs estĆ” na 62ĀŖ posição, enquanto a plataforma colaborativa Equaldex o coloca no 44Āŗ lugar em uma lista de 197 paĆses.
Entre as razƵes dessa posição mediana estĆ” a diferenƧa no tratamento judicial do tema conforme a regiĆ£o. Por exemplo, ao analisar o artigo 24 da Constituição japonesa ā segundo o qual o casamento exige o consentimento de “ambos os sexos” ā, o Tribunal Distrital de Osaka decidiu, em junho do ano passado, que o texto constitucional nĆ£o abrangia a uniĆ£o de pessoas do mesmo sexo; no ano anterior, porĆ©m, o Tribunal Distrital de Sapporo considerou possĆvel o casamento civil para trĆŖs casais homossexuais.
Outro motivo Ć© a existĆŖncia de normativos como a lei que disciplina procedimentos para pessoas com “desordem de identidade de gĆŖnero”. De acordo com a norma, a autorização judicial para a alteração civil do gĆŖnero exige que a pessoa interessada “nĆ£o tenha glĆ¢ndulas reprodutivas ou que as glĆ¢ndulas reprodutivas tenham perdido permanentemente essa função” ā uma indicação da necessidade de cirurgia ou tratamento para ter acesso Ć mudanƧa do registro civil.
Em 2018, a Suprema Corte do JapĆ£o considerou que a lei sobre a “desordem de gĆŖnero” Ć© constitucional.