Professor de química e de EJA de Beruri, no interior do Amazonas, reúne educadores e alunos voluntários para levar oficinas de poesia a escolas da região
Estimular o protagonismo da juventude, valorizar a cultura local e os saberes das comunidades tradicionais, indígenas e ribeirinhas. Essa é a proposta do “Semente Materna Poética”, projeto que criei na Escola Estadual Euclides Corrêa Vieira e, atualmente, segue na Escola Estadual Getúlio Vargas. Moramos em Beruri, no interior do Amazonas, cidade com pouco mais de 20 mil habitantes e sem estradas: para chegar na capital Manaus, por exemplo, são aproximadamente 16 horas de barco (ou cerca de 6 horas se o barco for expresso). Contribuir para romper paradigmas sobre o ensino interiorano e mostrar o valor artístico dos estudantes motivou a criação dessa prática. Nós, educadores, temos de estar o tempo todo atentos aos alunos. Eles sempre nos inspiram.
Tudo começou com uma observação na Escola Euclides, em 2019, onde lecionava química para o ensino médio. No Dia das Mães, notei que alguns alunos decidiram declamar poesias como forma de homenageá-las. Eram muito bonitas e eu não me lembrava de tê-las ouvido antes. Fui perguntar a autoria e fiquei surpreso: os próprios estudantes as escreveram.
“Vocês são poetas!”, disse a eles, que, à princípio, ficaram ressabiados. Mas eu precisava fazê-los acreditar em seu potencial criativo. Meu papel, portanto, foi instigá-los a escrever mais: “Precisamos publicar um livro para que vocês expressem o que andam sentido”. O convite surtiu efeito e, em poucas semanas, mais estudantes me trouxeram poesias feitas em casa. Foi muito legal ver a vontade da turma em escrever, a alegria com a proposta: não foi uma imposição minha, longe disso. Surgiu, então, a ideia de reunir os trabalhos no livro “Jovens Poetas de Beruri”.
Mas o caminho até a impressão da publicação envolveu uma série de oficinas e bastante pesquisa sobre poesia lírica, satírica e sacras. Nas aulas de iniciação científica, focamos no estudo de grandes autores amazonenses, como Ana Peixoto e Thiago de Mello. As aulas eram ministradas inicialmente por mim e por um estudante que já havia saído da escola. Logo, outros alunos e professores aderiram ao grupo, todos de maneira voluntária. Hoje, somos uma equipe de sete pessoas: duas alunas (Rosane Brito de Melo e Evellyn Francisca Atriclino Videira) e cinco educadores (Edna Oliveira Brito, Andrenilson Lisboa Garone, Carla Jeneti Vasconcelos Pinheiro, que é ex-aluna, Leandresson Lopes da Silva e eu). Contamos com colegas que dão aula de português para a correção e orientação dos textos, a fim de agregar, mas sem alterar o sentido do que a turma escreve.
Optamos pelas metodologias ativas baseadas no STEAM (Ciência, Tecnologia, Engenharia, Arte e Matemática). Entendemos a ciência no sentido de expressar a preocupação com a questão ambiental. A tecnologia aparece com o apoio do celular para registrar as fotos e pré-diagramar os livros, e com o uso do computador para digitar os textos. A engenharia, nesse caso, é falar da nossa “cultura da canoa”, como nos locomovemos e por onde acontece o desenvolvimento local.
Com ilustrações e poesias de 23 estudantes sobre assuntos voltados à questão ambiental e à cultura da região, fizemos bingo, rifas e vaquinhas para juntar o dinheiro necessário para a diagramação e impressão dos exemplares. O resultado alcançou outras turmas da escola e a estante da nossa biblioteca. E não parou por aí.
Um ex-aluno meu levou o livro para o povo indígena Apurinã, e logo recebemos o convite do professor local, para que pudéssemos replicar nossas oficinas com as turmas de ensino fundamental da Escola Municipal Indígena Menino Deus. Novamente, recorremos a diferentes maneiras de arrecadar verbas para que a equipe pudesse viajar.
Poesia na língua indígena
Nossa estrada é o Rio Purus e, para chegar à comunidade indígena Santa Rita, do povo Apurinã, levamos 8 horas de barco até a base flutuante e 2 horas de rabeta (pequena embarcação) para a chegada na aldeia. Enquanto planejamos a viagem, o professor local, Gonzaga Brasil, fez um documento de aceite da comunidade, com aprovação do cacique para a nossa chegada.
Passamos três dias na escola indígena. No primeiro, fomos de casa em casa, acompanhados pelo professor local, a fim de explicar o projeto. A princípio, muitos reagiram de maneira tímida, mas logo aceitaram a proposta – alguns moradores, inclusive, quiseram participar pessoalmente do projeto. Nos dois dias seguintes, realizamos as oficinas, em língua portuguesa, com o apoio do professor Gonzaga, que fazia as traduções das poesias para o idioma materno dos Apurinã. Ele foi fundamental no processo, oferecendo-nos todo o suporte.
Chamamos a oficina de “Encontro de Jovens Poetas e Artistas”, com o propósito de valorizar a língua, a cultura, a vivência e os ancestrais do povo indígena. Eles foram convidados a escrever e também ilustrar aspectos da cultura local. Afinal, a arte pode ser expressa de diferentes maneiras. Em duplas, um desenhava enquanto o outro escrevia. Foi um trabalho coletivo, literalmente comunitário.
Essa experiência nos marcou muito – tanto a nós, professores, quanto aos alunos. Não conhecíamos a comunidade, fomos muito bem recebidos e aprendemos junto com eles. Conseguimos imprimir alguns exemplares do livro “Poena Sâkíira Popîkarí – Poetas Indígenas Apurinã”, escrito no idioma materno e ilustrado com grafismo local pelos alunos que participaram das oficinas. Além do bingo, parte da verba veio de um edital do projeto Conectando Saberes, do qual participo.
Na volta, conseguimos arrecadar, com nossa comunidade e o apoio da secretaria de educação, mais de 200 livros para criar uma biblioteca na escola indígena, montada em madeira pela nossa equipe. Uma prateleira em destaque, intitulada “Literatura local”, expõe os livros escritos pelos jovens poetas. Ao final, fomos chamados para uma reunião com o professor Gonzaga, os caciques e alguns anciãos da comunidade. “Nós não temos material didático para trabalhar a língua materna Apurinã”, eles nos disseram.
Como pode, em um país com comunidades de povos originários, o indígena não ter material didático? É um absurdo. Até eu, como amazonense, desconhecia esse problema. Minha avó era indígena, então eu não sabia da minha própria realidade, das minhas próprias raízes! Por isso, neste exato momento, estamos trabalhando em materiais de apoio para a comunidade.
Realidade ribeirinha
Também levamos as oficinas para a comunidade ribeirinha Tuiué, localizada a aproximadamente 18 horas de barco daqui de Beruri. Por lá, fizemos a primeira edição do livro chamado “Jovens Poetas da Escola d’Água”. O processo foi o mesmo: três dias de oficina, desta vez na Escola Municipal N. S. Do Perpétuo Socorro. Também fomos à comunidade Jari, que fica a 18 horas de barco, com a mesma proposta. Por lá, na Escola Santa Luzia, imprimimos o livro “Poetas e artistas da Escola d’Água Jari”. Nossa parada mais recente foi em Manicoré, na comunidade Santa Luzia. A distância de 170 km de barco não impediu que fizéssemos a oficina de três dias e a segunda edição do livro “Jovens Poetas da Escola d’Água”, na Escola Municipal Santa Luzia (coincidentemente, as duas escolas têm o mesmo nome).
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O projeto “Semente Materna Poética” luta pelo fortalecimento do protagonismo dos alunos amazonenses, da nossa cidade e das comunidades indígenas e ribeirinhas. Tudo é feito de forma voluntária: existem dificuldades, mas nosso amor pela educação é ainda maior. Entendemos a importância de olhar para esses estudantes e fazer com que eles mesmos contem sua história, não que os outros contem por ele. Eles precisam ter voz, se expressar, falar de sua cultura e de seu lugar.
A leitura é a chave que abre portas capazes de romper com as desigualdades sociais. Só que precisamos mudar o olhar aculturado para essas comunidades. Dizem que nós não conseguimos ou não somos capazes, mas o projeto está aí para provar o contrário. Somos poetas, artistas. Falar de nós sem nós não
Tem uma galera muito boa produzindo poesia, falando da sua identidade, falando da importância da preservação ambiental, do quanto a floresta e o rio são produtores de conhecimento. Dois ex-alunos meus, inclusive, já se lançaram como escritores: Mateus Cabral publicou o livro “Pérolas de um sonho poético” e o Marcio Silva, indígena, está cuidando dos últimos detalhes de seu primeiro livro antes da impressão, na língua Apurinã.
Outros dois colegas professores também estão prestes a lançar suas obras impressas, de literatura infantil, inspiradas no trabalho feito com os estudantes. Leandresson Lopes escreveu “As aventuras de Bolota” e Marta Tavares é autora de “Vidas Ribeirinhas”.
É preciso dar voz à floresta e ao povo da floresta. Assim venceremos todos, por meio da educação.