Rico em componentes com potencial antioxidante, fruto da Amazônia ainda é pouco consumido em outras áreas do País
A pupunha (Bactris gasipaes) é um fruto tradicional na dieta das populações da região amazônica. Entretanto, seu uso na culinária de outras áreas do Brasil ainda é bastante limitado, e o que costuma chegar à mesa dos brasileiros é apenas outra parte de sua palmeira, o palmito. Rico em componentes fenólicos, que possuem potencial antioxidante, o fruto da pupunha há anos espera pela atenção dos especialistas para ganhar mais popularidade no País, seguindo a trajetória de outros alimentos vindos da Amazônia, com o açaí e o cupuaçu.
Um passo nesse sentido, visando avaliar as características da pupunha e suas possibilidades na cozinha, começou a ser dado na cidade de Pirassununga, na Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos (FZEA) da USP. Trata-se de um estudo realizado por Yves José de Souza Santos, orientado pela professora Fernanda Vanin, com coorientação de Luiz Alberto Colnago, pesquisador da Embrapa Instrumentação de São Carlos.
Durante seu mestrado, Santos, que é natural do Acre, produziu uma farinha a partir de frutos da pupunha coletados em seu estado natal e em Rondônia. Com eles, realizou uma caracterização de suas propriedades e criou uma base de dados sobre o alimento. Com essas informações, o pesquisador avaliou então os aspectos nutricionais e a segurança da farinha para o consumo humano.
A farinha de pupunha pode ser usada na panificação, no preparo de bolos, biscoitos e outros alimentos. Em relação ao fruto, apresenta como vantagem sua durabilidade, podendo ser adicionada em produtos com prazo de validade mais longo. Além disso, a produção da farinha poderia ajudar economicamente suas áreas de cultivo e incentivar a economia local.
“Queríamos aumentar a vida de prateleira, sua disponibilidade e a chance de consumo”, explica Fernanda. “O fruto tem vida útil muito curta. E, além disso, talvez seja mais fácil de consumir a farinha, já que a pupunha tem um gosto muito característico.”
“A farinha de pupunha pode também ajudar a reduzir o consumo do trigo, que lá possui preço bem mais alto do que aqui. Seria uma opção”, comenta Luiz Colnago. O produto seria também, complementa o pesquisador, uma alternativa para as pessoas que não podem consumir glúten.
Segundo Fernanda, antes da pesquisa outros trabalhos acadêmicos já haviam analisado a aplicação dessa farinha em alimentos. Contudo, apesar desses estudos já apontarem para possíveis utilizações na culinária, a professora argumenta que uma caracterização mais completa da farinha de pupunha ainda não havia sido feita.
Em seu trabalho, Yves Santos analisou a qualidade do amido, os compostos bioativos (substâncias presentes em pequenas quantidades nos alimentos que, apesar de não serem essenciais ao organismo, como é o caso dos nutrientes, podem apresentar potencial para reduzir o risco de doenças) e verificou a influência do local de colheita nos frutos. Os resultados mostraram que, além da função antioxidante, a farinha de pupunha tem alta concentração de carboidratos, além de conter lipídios, proteínas e fibras e boas concentrações de potássio, ferro e manganês.
Desafios
Santos também avaliou os impactos da farinha na digestão, aplicando-a em uma amostra de iogurte. Foi aí que o pesquisador encontrou resultados que o surpreenderam. Foram identificados efeitos antinutricionais na farinha de pupunha. Os experimentos revelaram que o produto reduziu a absorção de proteínas no processo de digestão in vitro, e uma das possíveis causas pode ter sido graças a alta concentração de componentes fenólicos, um grupo de compostos bioativos que aparece em vegetais como hortaliças, frutas, cereais, café e soja e que apresenta características antioxidantes, com possibilidade de atuação na prevenção de doenças.
Essa análise foi feita em parceria com os professores Rosemary Carvalho e Heidge Fukumasu e a pesquisadora Arina Rochetti, também da FZEA, William Facchinatto, doutor pelo Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da USP, e Martine Morzel e Steven Le-Feunteun, do Institut National de Recherche pour l’Agriculture, l’Alimentation et l’Environnement (Rennes-França).
Analisando o iogurte com e sem a farinha, os pesquisadores perceberam que esta atrapalhava a absorção de proteínas. “Sabíamos que a farinha tinha uma grande concentração de compostos fenólicos, mas não imaginávamos que isso iria atrapalhar de maneira tão importante a bioacessibilidade de absorção das proteínas”, conta Fernanda.
Segundo Colnago, apesar de contrariar as expectivas, esses resultados não são inusitados. É sabido, explica o pesquisador, que compostos fenólicos podem ter a capacidade de reduzir a absorção de proteínas e até mesmo de outros nutrientes. Tais efeitos antinutricionais não são incomuns em diversos alimentos conhecidos. O estudo permitiu verificar que o estado natural (ou in natura) de um alimento, o modo como ele é encontrado diretamente na natureza, nem sempre é a melhor maneira de consumi-lo, afirma Fernanda.
“Temos a tendência de achar que tudo o que é natural, que não passa por processos industriais, é melhor. Estamos agora buscando alternativas para mostrar que não, ou seja, mostrar que alguns processos industriais podem melhorar os aspectos nutricionais dessa farinha, por exemplo, e desmistificar a ideia de que o natural é sempre melhor que o processado.”
Mas não foi só o problema na bioacessibilidade de absorção de proteínas que acendeu o alerta amarelo em Santos e seus orientadores. Os compostos fenólicos também apresentaram potenciais riscos para o metabolismo celular. Isso significaria sua capacidade de comprometer e até mesmo matar células do organismo, exigindo uma avaliação cuidadosa da quantidade de farinha de pupunha que poderia ser incorporada aos alimentos.
Fernanda, entretanto, diz que não é preciso alarme. “O estudo inicial demonstrou que há efeito citotóxico in vitro, porém em concentrações altas da farinha. Definitivamente, mais estudos são necessários para afirmar sua toxicidade para organismos vivos, não sendo possível neste momento afirmar ser ou não tóxica. Esse é um primeiro estudo e ainda precisamos de novas análises e estudos envolvendo animais.”
Essa é uma das metas da continuação da pesquisa de Santos, no doutorado. “Um dos objetivos é fazer o estudo da citoxidade em outras células, tanto saudáveis quanto cancerígenas, e testar também em seres vivos, para bater o martelo nesses dados do mestrado.”
Conforme explica o pós-graduando, os processos usados durante a pesquisa podem ter contribuído para esses resultados inesperados. “Acreditamos que com um processamento diferente conseguiríamos eliminar ou reduzir esses efeitos negativos”, afirma. “A farinha apresenta uma série de vantagens e, por isso, decidimos continuar os estudos utilizando essa matéria-prima.”
Apesar dos resultados contrários às expectativas, Santos pretende continuar a trabalhar com o fruto no doutorado, utilizando outras técnicas de obtenção da farinha e refazendo os testes em busca de resultados mais promissores.
“Constatamos que a pupunha pode abrir portas na área de panificação e massas. Ela é rica em amido que parece ser de boa qualidade, o que permite sua incorporação e até mesmo a substituição da farinha de trigo pela de pupunha em alguns produtos”, afirma Santos.
“Queremos continuar estudando para ver se, com a Engenharia de Alimentos, podemos minimizar o lado não tão bom e deixar essa farinha melhor, para que ela não atrapalhe a absorção de proteínas e minimize o potencial citotóxico”, assinala Fernanda.
Os resultados da pesquisa, com os detalhes dos procedimentos utilizados, estão presentes no artigo Systemic characterization of pupunha (Bactris gasipaes) flour with views of polyphenol content on cytotoxicity and protein in vitro digestion, publicado no volume 405 da revista Food Chemistry.
A dissertação Sistemas alimentares inclusivos e eficientes: efeito do processamento na funcionalidade de farinhas alternativas (propriedades químicas, estruturais e digestibilidade de produto), de Yves José de Souza Santos, está disponível na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP e pode ser acessada aqui.