Neste semestre, três personagens da história contemporânea do Brasil entraram para a lista oficial de heróis e heroínas da pátria. São eles: Antonieta de Barros, primeira parlamentar mulher negra do País; Adhemar Ferreira da Silva, atleta negro que se sagrou o primeiro bicampeão olímpico brasileiro; e Jaime Wright, pastor presbiteriano que teve atuação pioneira nos direitos humanos. As homenagens oficiais constam em três leis aprovadas pelo Congresso Nacional e sancionadas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Os nomes de Antonieta, Adhemar e do pastor Jaime serão inscritos no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, também chamado de Livro de Aço. O monumento, feito de páginas de aço, é abrigado no Panteão da Pátria Tancredo Neves, localizado na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Segundo o gerente do Centro Cultural Três Poderes, Rafael Rangel Soffredi, a inscrição de nomes no Livro de Aço costuma ser acompanhada de um evento com a presença de autoridades. No entanto, ainda não há previsão de data para o evento. A última vez que um evento deste tipo aconteceu foi em dezembro de 2018. Desde então, há uma fila de nomes aguardando que a homenagem ganhe materialidade.
O alcance dessas homenagens, contudo, é assunto para debate. Na opinião do professor Marcos Napolitano, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, a homenagem sancionada ao pastor Jaime Wright é mais do que justa.
“Na verdade, necessária, em um país em que muitos ditos ‘cristãos’ acham que direitos humanos são um slogan ‘comunista’ e feitos para ‘proteger bandidos”,’ confundindo a necessária e justa punição a qualquer crime com atos ilegais e abjetos cometidos por agentes do Estado contra cidadãos, amontoando-os em calabouços, executando-os sem julgamento, torturando-os como forma de vingança contra eventuais crimes, nem sempre efetivamente cometidos, diga-se”
COMENTA O HISTORIADOR.
A homenagem a Adhemar Ferreira da Silva, que será o primeiro atleta a ter seu nome inscrito no Livro de Aço, foi comemorada pela Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt). “Estou muito feliz por mais esse reconhecimento ao talento e conquistas do Adhemar no atletismo”, disse o presidente do Conselho de Administração da entidade, Wlamir Motta Campos, em nota oficial divulgada após a sanção de Lula.
Já o professor Marco Bettine, do curso de Educação Física e Esporte da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, também comentando a homenagem ao bicampeão olímpico do atletismo, se mostrou mais cético.
“É legal ter a memória. Mas essa memória tem que vir junto com uma exposição midiática correta. Chamar os meios de comunicação e os partícipes dos movimentos de não esquecimento das pessoas negras. E mais do que isso, tem que olhar para os familiares deles. Será que a gente não deve, enquanto sociedade que é estruturalmente racista, garantir (a)os familiares que dependiam da atividade atlética deles algum tipo de reparação?”
QUESTIONA O PROFESSOR DA EACH.
Bettine lembra que o racismo estrutural afeta tanto os ganhos com patrocínios dos atletas profissionais não brancos quanto as condições de acesso da população negra às práticas esportivas. Isso significa, por exemplo, que menos crianças negras do que brancas aprendem a nadar. Ou que, em modalidades consideradas “democráticas”, como a corrida de rua, as barreiras de entrada vêm crescendo mesmo em categorias amadoras, pois cada vez mais os atletas amadores têm investido em suplementação alimentar, calçados de última geração e acompanhamento de personal trainers.
Ele também problematiza as homenagens pontuais, que, por não serem periodicamente reiteradas, podem levar ao esquecimento.
“A política do esquecimento é a melhor forma de você desconsiderar as lutas históricas. Então, enquanto algumas lutas permanecem no tempo, outras são esquecidas. Se não houver uma política de resistência que coloque essa voz e continuamente levante todas as vozes que foram silenciadas, parece que, cada vez que avança alguma coisa na área de direitos humanos, a pessoa vai ter que colocar sempre o primeiro tijolo”
COMENTA BETTINE.
Criado em 1992, o Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria homenageia personalidades que tiveram papel fundamental na defesa ou na construção do Brasil. A lista de homenageados inclui atualmente 66 nomes, entre homens e mulheres que atuaram como escritores, intelectuais, revolucionários, políticos, militares, músicos, profissionais de saúde, inventores e religiosos. Já o Panteão da Pátria foi inaugurado em 1986 para homenagear brasileiras e brasileiros que lutaram por ideais de liberdade e democracia. Também consagra a memória de Tiradentes, o Patrono Cívico da Nação Brasileira. Projetado por Oscar Niemeyer, o edifício tem formato de pomba e três pavimentos. O Livro de Aço fica no terceiro pavimento.
Conheça as trajetórias dos novos heróis e heroína da pátria
Adhemar Ferreira da Silva
bicampeão olímpico no salto triplo
Adhemar Ferreira da Silva nasceu na zona norte de São Paulo em 29 de setembro de 1927, filho de uma cozinheira e um ferroviário. Diferentemente de outros talentos do esporte, começou sua carreira no atletismo somente aos 18 anos. Treinava durante seu horário de almoço, pois equilibrava os treinos com seus horários de trabalho e de aulas. Na pista de atletismo, era orientado pelo treinador alemão Dietrich Gerner, no São Paulo Futebol Clube – o tricolor paulista, aliás, até hoje homenageia seu bicampeão olímpico no uniforme, com as duas estrelas douradas costuradas junto ao escudo do time.
Adhemar levou o ouro no salto triplo nos Jogos Olímpicos de Helsinque, em 1952, e de Melbourne, em 1956. Foi o primeiro atleta brasileiro a conquistar tal façanha – o feito só seria igualado por outros brasileiros em Atenas, em 2004. Também representou o Brasil em duas outras olimpíadas, em 1948 e 1960.
Ao longo de sua carreira esportiva, o atleta bateu cinco vezes o recorde mundial no salto triplo. Em Helsinque, superou duas vezes seu próprio recorde, com saltos de 16,12 m e 16,22 m. Sua melhor marca foi a dos Jogos Panamericanos de 1955, na Cidade do México: 16,56 m. Na época, o atleta treinava pelo Vasco, após uma década defendendo a camisa do São Paulo. A mudança para o Rio de Janeiro foi motivada por um convite para ser colunista do jornal Última Hora.
É que, além de atleta, Adhemar Ferreira da Silva foi jornalista, escultor, servidor público, ator e organizador de eventos. Formou-se em Educação Física na Escola Preparatória de Cadetes do Exército, em Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro e em Relações Públicas na Faculdade Cásper Líbero. Atuou na peça Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes, e no filme Orfeu Negro, ganhador da Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1959. Foi também adido cultural na embaixada brasileira em Lagos, na Nigéria, entre 1964 e 1967.
Adhemar morreu de parada cardíaca em São Paulo no dia 12 de janeiro de 2001, aos 73 anos. Em 2012, seu nome entrou para o hall da fama do Comitê Olímpico Brasileiro. É o único atleta brasileiro homenageado no hall da fama da Associação Internacional de Federações de Atletismo (IAAF). A homenagem no Livro de Aço, em Brasília, foi proposta pela deputada federal Lídice da Mata (PSB-BA).
Jaime Nelson Wright
pastor presbiteriano e defensor dos direitos humanos
Filho de missionários norte-americanos, Jaime Wright nasceu em Curitiba em 12 de julho de 1927. Na juventude, mudou-se para os Estados Unidos a fim de estudar teologia. Lá, também fez pós-graduação na Universidade de Princeton. Voltou ao Brasil após concluir os estudos na pós-graduação e se mudou para o interior da Bahia, para dirigir o Instituto Ponte Nova, uma escola fundada em Cachoeirinha por missionários presbiterianos. Posteriormente, em 1968, assumiu a direção da Missão Presbiteriana do Brasil Central, em São Paulo. Nessa época, ele já atuava no campo dos direitos humanos.
Segundo o professor Marcos Napolitano, o pastor foi uma das referências históricas na luta pelos direitos humanos no Brasil e um dos pioneiros do tema. “Ele era irmão de um dos desaparecidos políticos da ditadura brasileira, o deputado Paulo Wright, e esse trágico episódio familiar o engajou ainda mais na luta contra os métodos da ditadura para punir seus oponentes”, conta o professor da FFLCH.
Um episódio importante na militância de Jaime Wright no campo dos direitos humanos foi o ato ecumênico em memória ao jornalista Vladimir Herzog, realizado na Catedral da Sé no dia 31 de outubro de 1975. Ao lado do cardeal Paulo Evaristo Arns e do rabino Henry Sobel, o pastor Jaime foi um dos ministrantes.
“Herzog havia sido morto sob tortura no DOI-Codi de São Paulo uma semana antes. Este ato foi um marco da resistência civil à ditadura e teve grande impacto social, com o comparecimento de 8 mil pessoas em um contexto de forte repressão”
LEMBRA NAPOLITANO.
Jaime Wright também foi um dos coordenadores do trabalho de documentação das violações de direitos humanos que resultou no livro Brasil: Nunca Mais, o primeiro grande relatório sobre torturas, mortes e desaparecimentos forçados durante o regime militar feito no Brasil.
O pastor faleceu em 1999. A inclusão de seu nome no Livro de Aço foi proposta pelo ex-deputado federal Fábio Sousa (PSDB-GO).
Antonieta de Barros
educadora, escritora e deputada estadual
Antonieta de Barros nasceu em Florianópolis em 1901, filha de uma trabalhadora escravizada e liberta. Era órfã de pai. Antonieta e sua família desde cedo investiram seus esforços na educação. Ainda menina, recebeu educação de uma professora que conhecia sua mãe. Mais tarde, ingressou na Escola Normal Catarinense, onde concluiu o magistério. Antonieta fundou um curso primário com seu nome e o dirigiu até sua morte. O curso funcionou na casa da família e manteve suas atividades por 42 anos, 30 deles sob a direção da fundadora. Após sua morte, sua irmã Leonor de Barros deu continuidade ao trabalho até 1964.
Além desse curso, Antonieta foi professora de português e psicologia do Colégio Coração de Jesus de Florianópolis – um colégio de freiras que atendia a elite feminina da cidade – e diretora do Instituto de Educação e Colégio Dias Velho, que teve um papel importante na modernização do ensino no Estado de Santa Catarina. Como jornalista e escritora, colaborou com diversos jornais e publicou o livro Farrapos de Ideias, de 1937, sob o pseudônimo Maria da Ilha.
Antonieta participou da Constituinte Estadual de Santa Catarina em 1935. Foi a primeira mulher eleita naquele estado para o Congresso Legislativo e a primeira mulher negra a ocupar esse posto no Brasil. Faleceu em 28 de março de 1952. Sua homenagem no Livro de Aço foi proposta pelo ex-deputado federal Alessandro Molon (PSB-RJ).