Cientistas traçam origem e evolução das serpentes que perderam dentes e glândulas responsáveis pelas picadas venenosas e que passaram a comer moluscos
Um grupo de pesquisadores do Museu de Zoologia da USP, em parceria com o Instituto Butantan e outras universidades latino-americanas, descobriu uma associação entre a dieta e os componentes do aparato de veneno das serpentes. O artigo foi publicado no periódico Systematics and Biodiversity.
A investigação se concentrou na perda dos componentes mais comuns do aparato de veneno em cobras que passaram a comer presas gosmentas, conhecidas como goo-eaters, ao longo da história. Esse grupo compreende espécies que se alimentam de minhocas, lesmas ou caracóis, como as dormideiras. A pesquisa observou que mais de 30 espécies estudadas perderam totalmente as estruturas do aparato de veneno associado ao maxilar.
Leonardo de Oliveira, o primeiro autor do artigo, esclarece ao Jornal da USP que até então não se sabia nem mesmo se essas serpentes tinham glândulas de veneno associadas a dentes inoculadores: “Nós estudamos a fundo do ponto de vista morfológico esse que constitui um dos maiores grupos de serpentes no mundo, além de ampliar os estudos sobre os relacionamentos dessas espécies.”
Os pesquisadores notaram que as glândulas infralabiais das goo-eaters parecem liberar proteínas que facilitam a degradação das gosmas. “Há provavelmente substâncias ali que auxiliam a serpente tanto a remover os caramujos de dentro das conchas, quanto eventualmente a se livrar do muco das lesmas.”
Não é possível ainda afirmar se o que as glândulas dessas serpentes produzem pode ser considerado veneno. Isso não as colocaria, porém, no rol de serpentes peçonhentas. São consideradas peçonhentas as que conseguem envenenar por meio de dentes especializados na parte da frente da boca, como cascavéis e jararacas. No entanto, existem também serpentes não peçonhentas que introduzem as toxinas através de dentes do fundo da boca, como, por exemplo, as dormideiras da espécie Imantodes cenchoa, que se alimentam de pequenos lagartos e que possuem as glândulas de veneno. Elas são classificadas assim porque oferecem aos humanos um perigo muito menor.
As dormideiras da espécie Imantodes cenchoa se alimentam de pequenos lagartos. A estrutura de glândula e os dentes alongados do veneno presentes nelas foi perdida nas goo-eaters – Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Linha do tempo
O aparato de veneno das cobras normalmente é composto de uma glândula que produz o veneno, uma musculatura que pressiona a glândula para que o veneno seja expulso e um dente comprido que fura a vítima. Essa estrutura pode ser encontrada somente nas serpentes avançadas (grupo que corresponde a cerca de 80% das espécies conhecidas) e está ligada à maxila (parte de cima da boca).
Ao longo da evolução, no entanto, algumas espécies perderam esse mecanismo. Dessa forma, algumas delas atacam se enrolando e espremendo outros animais. Outras, que foram o alvo da pesquisa, se alimentam de invertebrados de corpo mole e viscoso, como minhocas e moluscos.
A volta ao passado para entender como as espécies mudaram ao longo do tempo é feita através de uma análise filogenética.
Por meio de uma análise do DNA das cobras, a análise filogenética procura entender os relacionamentos de parentesco entre as diversas espécies de um grupo. Assim é possível saber quais espécies compartilham ancestrais comuns e entender a evolução de suas diversas características – Foto: Systematics and Biodiversity
O grupo representado na figura é a subfamília Dipsadinae. Essas serpentes são encontradas na América do Sul e na América Central. Em algum momento do passado, as primeiras serpentes foram separadas em dois ou mais grupos que se diferenciaram. Esse fenômeno se repetiu, dando origem a outras espécies, como mostra o diagrama.
As primeiras dez espécies, de cima para baixo, representam o grupo de dipsadíneos que se alimenta de vertebrados e tem uma glândula de veneno bem evidente, representada em vermelho. O veneno escorre pelos dentes, apresentados em cor laranja.
As outras 12 representam as goo-eaters, que comem invertebrados e não têm glândula de veneno, nem um dente inoculador. São cerca de 300 espécies, ou seja, quase 10% das serpentes conhecidas no mundo.
Através da análise de detalhes da arcada dentária, foi possível constatar que as serpentes goo-eaters possuem apenas dentes que se assemelham aos da parte da frente da boca. “No embrião, o maxilar das serpentes dipsadíneas que se alimentam de vertebrados é formado por duas partes: a parte anterior e a parte posterior. As goo-eaters provavelmente perderam a porção posterior do maxilar, que abriga tanto o dente inoculador quanto a glândula de veneno”. Imagem: Systematics and Biodiversity – Foto: Systematics and Biodiversity
Na foto número 2 da imagem acima, pode-se ver um dente com duas cristas. Esses sinais, um na frente e um atrás, são típicos de dentes com origem embrionária da parte de trás do maxilar. Essa característica não é observada em nenhuma das serpentes que se alimentam de minhocas e moluscos. Quando há apenas cristas laterais e no meio, o dente correspondente é considerado da parte da frente do maxilar, que não tem relação com as glândulas de veneno ou com a inserção dele. As alterações nas etapas do desenvolvimento embrionário do maxilar provavelmente moldaram um sistema de arcada dentária uniforme em toda a maxila das goo-eaters e a ausência das glândulas de toxinas venenosas. Isso resultou na perda de todos os componentes do aparato de veneno nessas serpentes.
(1 e 4) Glândula de veneno na maxila posterior das serpentes (vg). (6) Conjunto de glândulas na mandíbula de serpentes goo-eaters (il1 e il2) – Foto: Systematics and Biodiversity
Os cientistas já haviam identificado glândulas características dessas serpentes na região da mandíbula (parte de baixo da boca) em 2014, em artigos publicados pela BMC Ecology and Evolution e pelo Journal of Morphology. Leonardo, que realizou a pesquisa no Museu de Zoologia da USP e atualmente é vinculado ao Instituto Butantan, explicou ao Jornal da USP que, apesar dessas serpentes terem perdido completamente o aparato de veneno associado à maxila, a equipe já havia descrito nas goo-eaters um sistema de glândulas na região da mandíbula diferente do sistema tipicamente encontrado nas serpentes.
“Estamos desenvolvendo estudos no Instituto Butantan tentando entender o que ocorre com essas glândulas infralabiais que são bem desenvolvidas. A nossa intenção é tentar entender se aconteceu também a aquisição de toxinas diferenciadas ou proteínas que auxiliam na digestão desses animais”, revela Felipe Gobbi Grazziotin ao Jornal da USP, um dos autores do artigo.
As goo-eaters possuem uma estrutura distinta das demais que torna possível a ingestão de animais gosmentos. “As lesmas produzem um muco muito pegajoso capaz de colar as bocas de outros animais. Não é qualquer serpente que consegue comer uma lesma, por mais que pareça superinofensivo. Ela tem adaptações que não permitem ser comida por qualquer animal”, justifica Oliveira.
Os caramujos ainda têm uma concha protetora e, como se sabe, as serpentes não têm mãos para arrancá-los de lá. As goo-eaters, porém, apesar de terem perdido os componentes típicos do aparato de veneno das serpentes, parecem ter criado uma adaptação para superar esses obstáculos através de uma glândula infralabial. “As primeiras serpentes que se diferenciaram — Adelphicos, Geophis e Atractus — só comem minhocas. A partir da Tropidodipsas e da Sibon, passaram a comer também lesmas. As Dipsas só comem moluscos.”
Embora a especialização na dieta dessas serpentes goo-eaters fosse documentada há muito tempo, pouco se sabia a respeito da origem evolutiva delas e ainda menos da morfologia desses animais. A perda do aparato de veneno dessas serpentes parece uma resposta ao tipo de dieta. O desafio agora é entender melhor os mecanismos de desenvolvimento embrionário que proporcionaram a perda dos componentes do aparato de veneno, bem como compreender como esse sistema associado à mandíbula ajuda na predação de lesmas e caracóis.
Essas descobertas mostram a importância das glândulas e dentes especializados para contenção e manipulação dos alimentos. Essas estruturas podem se adaptar ao tipo de dieta apresentado pelos diversos grupos de serpentes ao longo da sua evolução. O trabalho teve o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e da National Science Foundation (NSF).
TXTO: Jornal da USP