A definição estĂĄ nos dicionĂĄrios: trauma Ă© uma vivĂȘncia profunda (medo, susto, perda etc.) que pode ocasionar sentimentos ou comportamentos desordenados e perturbaçÔes neurĂłticas posteriores. Oriunda do grego, significa ferida, como a que foi aberta com o assassinato da professora Elisabeth Tenreiro por um aluno de 13 anos, armado com uma faca. O crime aconteceu na Escola Estadual Thomazia Montoro, em SĂŁo Paulo (SP), na manhĂŁ da segunda-feira, 27 de março, somando 36 pessoas mortas como vĂtimas de atentados a escolas no paĂs.
O relatĂłrio âO extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques Ă s escolas e alternativas para a ação governamentalâ, orientado por Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da USP (Universidade de SĂŁo Paulo) e integrante da Campanha Nacional pelo Direito Ă Educação, apresentado durante a transição do governo federal em dezembro de 2022, aponta: âA entrada de uma pessoa armada em um ambiente escolar que assassina e fere uma ou mais pessoas dessa escola gera um trauma para as vĂtimas, seus familiares e testemunhas, mas, para alĂ©m disso, esse trauma atinge toda a comunidade escolar e local, alĂ©m de refletir em toda sociedadeâ.
Como lidar com o estresse pĂłs-traumĂĄtico, enfrentado mais uma vez pela comunidade escolar depois do ataque Ă escola paulistana? Como as reaçÔes podem impactar a vida de professores, estudantes e famĂlias? O que Ă© preciso fazer para acolher esse grupo? Para responder a tais questĂ”es, o Porvir conversou com a psicĂłloga Ediane Ribeiro, especialista em trauma. Confira:
Como lidar com o trauma depois de um assassinato como o ocorrido na Escola Thomazia Montoro?
Ediane Ribeiro â A exposição a uma violĂȘncia dessa grandeza Ă© um trauma de choque e precisa de açÔes, tanto individuais quanto coletivas. No Ăąmbito individual, todas as pessoas envolvidas â familiares da professora assassinada, da criança que era o alvo da agressĂŁo, todas as crianças e os funcionĂĄrios da escola â precisam receber acolhimento e suporte da sua rede de apoio, de familiares e amigos. Ă tambĂ©m muito indicada uma intervenção precoce de profissionais da ĂĄrea de saĂșde mental e emocional que possam ajudar a compreender como essa experiĂȘncia estĂĄ sendo processada por cada uma dessas pessoas, a fim de ajudĂĄ-las com tĂ©cnicas que possam reequilibrar o sistema emocional extremamente abalado. NĂŁo Ă© um tipo de situação que dĂĄ para a escola voltar a funcionar normalmente, como se nada tivesse acontecido. TambĂ©m Ă© preciso que o tema seja tratado coletivamente, dentro do ambiente no qual aconteceu a situação. A escola precisa criar espaços para que alunos, professores e funcionĂĄrios possam compartilhar suas sensaçÔes para terem a oportunidade de falar nĂŁo sĂł do trauma em si, o que nem Ă© tĂŁo indicado nesse momento, mas para que eles possam reconhecer no coletivo reaçÔes que sĂŁo naturais a esse processo.
Quais são essas reaçÔes?
Ediane Ribeiro â Nesse tipo de trauma, Ă© natural que nas prĂłximas semanas sejam vivenciadas reaçÔes agudas de estresse, com alteraçÔes de sono, pesadelos, sensação de alerta constante, sobressaltos. A ansiedade tambĂ©m aumenta, o coração acelera, a respiração altera, hĂĄ aperto no peito, dificuldade para relaxar, aumento da irritabilidade. ExplosĂ”es de raiva ou tentativas de evitar contato com a situação, como nĂŁo querer voltar Ă escola ou nĂŁo querer contato com as pessoas presentes no dia, trazem uma sensação de anestesia emocional. Todas essas situaçÔes fazem parte, sĂŁo um conjunto de sinais e sintomas da reação aguda ao estresse e sĂŁo esperadas nas primeiras semanas. Reconhecer isso coletivamente vai ajudar a processar a experiĂȘncia. Juntas, essas pessoas podem encontrar medidas de restabelecimento do senso de segurança. Por isso, rodas de conversa na escola, grupos de acolhimento mediados por pessoas que possam ajudar a encontrar estratĂ©gias de adaptação a essa fase de regulação do sistema emocional sĂŁo muito importantes e muito indicadas.
No campo da psicologia, como as violĂȘncias fĂsicas e simbĂłlicas na escola impactam a vida do estudante?
Ediane Ribeiro â As violĂȘncias sofridas ou presenciadas na fase escolar, sejam psicolĂłgicas, fĂsicas ou simbĂłlicas, podem deixar repercussĂ”es para a vida inteira. Nessa etapa da vida, estamos em uma fase do desenvolvimento do cĂ©rebro muito vulnerĂĄvel Ă alteração a partir das experiĂȘncias que vivemos. O nosso sistema nervoso, principalmente o cĂ©rebro, termina a sua maturação ali por volta da segunda dĂ©cada de vida, ou seja, por volta dos 24 aos 26 anos.
Quais marcas a violĂȘncia sofrida enquanto estamos na escola pode deixar?
Ediane Ribeiro â Na vida adulta, pode deixar marcas na capacidade de regulação emocional, na capacidade de construir vĂnculos de segurança, de controlar impulsos. TambĂ©m pode afetar funçÔes como atenção, planejamento, raciocĂnio lĂłgico. Alguns tipos de memĂłrias podem ter repercussĂ”es para a vida toda, desde prejudicar os relacionamentos, causando comportamentos nas relaçÔes como dependĂȘncia emocional, pela falta do senso de segurança⊠Podem ter muitas repercussĂ”es na forma como essas pessoas se relacionam com os outros, bem como abrir uma janela para ansiedade, depressĂŁo, transtorno do estresse pĂłs-traumĂĄtico, complexo ou o transtorno do estresse pĂłs-traumĂĄtico propriamente dito. Ou, ainda, essa janela pode ser aberta a comportamentos disfuncionais, como compulsĂ”es e vĂcios. Na idade escolar, estamos buscando pertencimento, tentando entender de quais grupos fazemos parte. Ă uma fase em que as experiĂȘncias violentas e traumĂĄticas podem deixar repercussĂ”es que duram a vida inteira.
O racismo e os discursos segregadores, por muitas vezes, podem ser pontos de partida para atos violentos. Como a psicologia explica esse tipo de atitude?
Ediane Ribeiro â Na fase escolar, estamos vulnerĂĄveis Ă s referĂȘncias externas. Ainda tentando entender quem somos, quais os nossos limites. Caso essas referĂȘncias sobre comportamento e questĂ”es sociais nĂŁo forem fortes na famĂlia, na escola e em todos os grupos dos quais a criança e o adolescente fazem parte, eles ficam sem limites, sem bordas, e vĂŁo buscar essas bordas naquilo que parece mais concreto, mais firme. Ă nesse momento que estĂŁo mais vulnerĂĄveis aos discursos extremistas e segregadores, porque esses grupos trabalham na oferta de uma segurança de um discurso que vai te dar segurança de quem vocĂȘ Ă©.
E como combater ou evitar essa aproximação com esse tipo de influĂȘncia?
Ediane Ribeiro â à importante que dentro de casa, na famĂlia e na escola existam referĂȘncias que contraponham com o mesmo grau de segurança. Precisamos, urgentemente, de uma educação antirracista, voltada ao letramento racial, que promova a discussĂŁo em todos os ambientes da famĂlia e da escola sobre igualdade racial, para que essas crianças e esses adolescentes tenham referĂȘncias sĂłlidas e nĂŁo precisem buscar a sua segurança, o seu limite, em agrupamentos que estĂŁo propagando violĂȘncia, segregação, discriminação e preconceitos.
Da AgĂȘncia Porvir