“A escola é uma comunidade. Nela, as pessoas interagem o tempo todo, os vínculos afetivos são fortes, você envia seu filho porque acredita na segurança daquele lugar. Por isso, quando há impactos negativos, eles são muito potencializados nos diversos grupos que a constituem. Um ataque violento à uma escola é gravíssimo.” Essa é a visão de Telma Vinha, professora e pesquisadora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), ao comentar sobre casos de extremismo em escolas e o recente assassinato da professora Elisabeth Tenreiro na Escola Estadual Thomazia Montoro, em São Paulo (SP).
Coordenadora do Grupo de Estudos “Ética, Diversidade e Democracia na Escola Pública”, do Instituto de Estudos Avançados da Unicamp, Telma participou, na sexta-feira (31), do webinário “A cobertura jornalística de ataques a escolas”. A conversa foi realizada pela Jeduca (Associação de Jornalistas de Educação).
Ela compartilhou detalhes da pesquisa que mapeia ataques de violência extrema nas escolas brasileiras. Nos últimos vinte anos, o grupo de estudos da Unicamp registrou 22 ataques, sendo 16 deles cometidos por estudantes e 12 por ex-alunos. A maioria dos casos aconteceu em escolas públicas e apenas em quatro instituições particulares. “Nove desses ataques ocorreram nos últimos oito meses, o que mostra um aumento muito expressivo. Isso é altamente preocupante”, pontuou a pesquisadora.
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O que justifica a escolha dessas escolas? O levantamento considera, entre outros indicativos, o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), os dados da Prova Brasil e os registros de segurança das unidades. Segundo a pesquisadora, não há nada que explique as ocorrências em determinados endereços. “Há escolas com infraestrutura mais precária, outras ainda mais violentas que não são atacadas. Isso pode acontecer com qualquer escola”, afirmou. “Quando conversamos (sobre isso) com professores, gestores e profissionais de escolas atacadas, eles ficam aliviados, porque são muito acusados, questionando-se o que fizeram para aquilo acontecer.”
“Há escolas com infraestrutura mais precária, outras ainda mais violentas que não são atacadas. Isso pode acontecer com qualquer escola:
Perfil de quem comete atos de extremismo nas escolas
Os responsáveis pelos ataques em escolas no Brasil são jovens brancos, do sexo masculino, sendo o mais novo com 10 anos de idade e o mais velho com 25 anos. Cultuam armas e apresentam indícios de transtornos mentais, que não foram diagnosticados ou tratados. “Eles têm características de isolamento social, com relações interpessoais muito mais online e não são populares da escola. Esse perfil corresponde muito aos ataques que ocorrem em outros países”, explicou.
Há, ainda, outras duas características dos jovens que cometem este tipo de ato. São vítimas de bullying, carregam episódios de violência na escola e aprendem na internet os métodos para planejar os ataques. Muitas vezes, são planejamentos meticulosos, como o de Aracruz (ES), que deixou quatro pessoas mortas: o adolescente, à época com 16 anos, levou dois anos pensando no crime.
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“Ao lado do sofrimento na escola, esses adolescentes são usuários de uma subcultura extremista. Além de voltar para a escola, eles querem mostrar seu valor e buscam fazer o maior número de vítimas. Eles se articulam em comunidades mórbidas online, com incentivo de violência e misoginia (ódio ou aversão a mulheres)”
Comentou Telma.
Há poucos anos, o acesso à deep web era mais difícil. Atualmente, não é difícil acessar perfis que glorificam a violência, com frases como “O bullying acaba quando o tiro começa”.
Outro ponto são os jogos online. Os jogos em si não são o maior problema, ressaltou a especialista, mas sim as conversas paralelas: há ali um aliciamento dos jogadores para outras plataformas. Os chats (conversas ao vivo) apresentam cada vez mais conteúdos de extrema direita, com convites para acessar a chamada TCC (True Criminal Communities, ou Comunidades de Crimes Reais, em português).
“Por lá, interagem normalmente jovens de 10 a 22 anos, cada vez mais radicalizados. No Discord (software destinado a gamers para se comunicarem enquanto jogam online), por exemplo, é possível ver o número de pessoas que estão interagindo no momento.” Em muitas conversas, disse Telma, “há uma imersão no discurso de ódio, como se o mundo devesse alguma coisa pelo fato de eles serem brancos, que está sendo sonegado o êxito ou a vaga na universidade porque outros grupos estão sendo favorecidos: negros, gays e mulheres têm privilégios ou por não terem os melhores empregos ou mulheres. A sensação é de ódio generalizado”
Explicou Telma.
Para a pesquisadora, esses grupos têm um poder de acolhimento e a sensação de pertencimento muito fortes que, por vezes, esses jovens não têm na escola. “Se ele brigou, se queria ficar com uma menina e não conseguiu, ele desabafa por lá. Os grupos acham que estão em missão, idolatram grupos extremistas e glorificam quem teve êxito em ataques em outras escolas.”
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O papel da imprensa
Nos fóruns extremistas há também competição para quem consegue mais atenção da mídia. “Há uma busca por notoriedade, eles querem ser vistos. Havia uma mensagem no Twitter desde 19 de janeiro, onde ele (adolescente que matou a professora na escola da Vila Sônia, em São Paulo), dizia: ‘Eu já tenho tudo, armas, roupas, não vou mostrar meu rosto’. Ele está dizendo o que vai fazer. Por mais que as plataformas sejam denunciadas, muitas vezes não retiram (o post) e não há uma investigação por trás”, comentou a pesquisadora.
Com a pandemia, os jovens ficaram muito mais tempo conectados. Houve adoecimento mental e mais violência na escola. “É o que se chama de terrorismo histórico estocástico, que é a manipulação do discurso para gerar medo e terror. É um discurso social autorizando o tratamento de conflitos pela violência”, explicou Telma. Ela exemplifica as consequências do isolamento: nos Estados Unidos, a média de tiroteios era de 11 por ano até 2018. Em 2022, esse número alcançou 46.
Tudo o que é noticiado, valorizado, vai intervir nesse tipo de ação violenta, inclusive a maneira como a imprensa cobre os casos que, por vezes, incentiva esse discurso do medo. A violência na escola é um problema complexo, com variáveis difíceis. “A culpabilização da família agrava ainda mais o problema”, acredita a especialista.
Influências das redes sociais
Também participou do debate a professora da UnB (Universidade de Brasília) Catarina de Almeida Santos, uma das coordenadoras da Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação. Caterina integra a Campanha Nacional Pelo Direito à Educação e é uma das autoras do relatório “O ultraconservadorismo e extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às instituições de ensino e alternativas para a ação governamental”, elaborado para a equipe de transição do governo federal.
“Trata-se de um conjunto de ações a serem pensadas por diferentes atores da sociedade, inclusive para não responsabilizar a escola pelos ataques que acontecem contra as próprias escolas”.
Ressaltou Catarina.
Ela ressaltou o papel das muitas mídias hoje existentes, incluindo as redes sociais. Nelas, esses jovens passam a observar as informações que vão servir de modelo a partir de fontes variadas. Tanto as redes quanto a imprensa podem influenciar a proliferação desses ataques por parte dos jovens e adolescentes.
“A forma como a mídia relata um evento pode desempenhar papel importante no aumento da probabilidade de que esses ataques voltem a acontecer. Quando acontece um ataque, a mídia faz uma extensa cobertura, que muitas vezes apresenta repetidamente a imagem, conta a história de vida daquele que provocou o ataque, os detalhes do evento. Isso pode influenciar, fazendo com que outros adolescentes queiram fazer o mesmo”
Explicou Catarina.
Para a pesquisadora da UnB, a exposição aumenta a notoriedade de quem provocou o ataque e isso tem a ver com a forma como a imprensa expõe o assunto. “A imagem desse atirador apontando a arma para a câmera projeta um ar de perigo e resistência e faz com que seja visto por quem quer desenvolver essas ações como sendo alguém com muita coragem, que se arriscou. Essa exposição das imagens repetidas é uma maneira de incentivar a repetição do acontecimento, demonstrando a competência de quem realizou o ataque, servido para criar um modelo detalhado para promover outros”, afirmou.
Esse tipo de cobertura precisa mudar, concordam as especialistas. Um exemplo que poderia ser adotado são as diretrizes da Organização Mundial de Saúde que apontam a não sensacionalização do suicídio, apontou Catarina.
“A cobertura ao vivo aumenta o nível de excitação em torno do evento. A atenção da mídia é percebida como recompensa às ações do atirador. A diminuição dessa cobertura pode minimizar a probabilidade de que outros sujeitos queiram imitar a ação. Não sugerir que a pessoa fez isso por depressão, não fornecer descrição, passo a passo dos métodos utilizados, não usar vídeos ou fotografias, reduzir o tempo de cobertura de um evento como esse ajuda a não proliferar os ataques”.
Concluiu.
Do site Porvir
Por Ana Luísa D’Maschio
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